A receita do pensamento integrador

Nos dias mais esfuziantes do boom das ponto.com no final do século XX, a convergência era o grande furor. A nova economia estava prestes a desbancar a velha e só se viam no futuro comércio online, cliques e URLs. Novos modelos de negócio baseados no mundo virtual fizeram com que negócios tradicionais, do mundo real, parecessem antigos e desinteressantes. Mas nem tudo aconteceu exatamente como era esperado.

  • A fusão da AOL com a Time Warner no ano 2000 fez muito barulho, mas não teve os resultados esperados. Motivo: tanto os executivos da AOL como os da Time Warner tinham sido vítimas do próprio pensamento; apenas queriam fundir lógicas conflitantes.
  • Eles não escolheram o caminho do pensamento integrador, que leva em consideração vários aspectos do problema e as relações causais entre eles. Quem se vale dessa abordagem é capaz de manter o problema completo em mente e encontrar soluções criativas e faz tudo isso de forma explícita, esforçando-se para entender “o pensamento por trás do próprio pensamento”.
  • Um exemplo positivo de utilização do pensamento integrador é o Festival de Cinema de Toronto, que conseguiu obter sucesso de crítica e público e se tornou porta de entrada do mercado cinematográfico norte-americano. [A Mostra Internacional de Cinema de São Paulo segue lógica similar.]

Poucos se lembram do clima corporativo durante a fusão da AOL com a Time Warner no ano 2000. Foi uma transação gigantesca, a maior da história: a audaciosa AOL comprou a venerável Time Warner por US$ 160 bilhões em ações, criando uma fortaleza das novas mídias, totalmente integradas, de US$ 350 bilhões.

O então presidente da Time Warner, Gerald Levin, defendeu a fusão destacando as sinergias que seriam geradas entre o maior provedor de serviços de internet do mundo e uma gigante da mídia que ainda não havia desvendado os segredos da oferta de conteúdo online: “Essa combinação estratégica com a AOL acelera a transformação digital da Time Warner, dando a nossas áreas de criação e conteúdo um quadro em branco enorme para ser preenchido”.

Infelizmente, a fusão descambou quase logo depois e, dez anos mais tarde, as empresas, agora independentes, valem apenas um sétimo do valor de antes da fusão. Como tudo pôde ter dado tão errado?

Alguns argumentam que o insucesso foi apenas uma questão de timing, que uma boa ideia (a convergência entre serviços e conteúdo de internet) se desfez pelo estouro da bolha das ponto.com. Ou talvez –e é essa nossa teoria– os executivos da AOL e Time Warner tenham sido vítimas do próprio pensamento, de uma vontade despreocupada de fundir lógicas conflitantes.

A tensão de ideias opostas deve ser usada de modo explícito, e nunca despreocupado, se o objetivo for gerar novas e melhores soluções.

SE + ENTÃO + MAS

  • (no caso AOL Time Warner)

É um erro comum enxergar só o que queremos enxergar, sem fazer as perguntas mais difíceis, testar suposições ou buscar entender de que maneira causas e efeitos estão conectados. Vamos pensar no caso que acabamos de descrever.

A Time Warner tinha um problema: não sabia como fazer as pessoas pagar por seu conteúdo online e se preocupava com a possibilidade de que, em um futuro completamente digital, um modelo de assinatura paga desaparecesse.

Surgiu, então, a AOL, impelida pelo boom das ponto.com. Ela tinha vasto público pagante, aparentemente sedento de informação. Juntas, AOL e Time Warner partiram da seguinte suposição: unidas poderiam oferecer aos consumidores da AOL o conteúdo valioso da Timer Warner, um diferencial entre os provedores de serviços de internet.

Além disso, a fusão daria à AOL o direito de utilizar os cabos de banda larga da Time Warner, aumentando sua capacidade de entrega de conteúdo de qualidade.

Parecia uma solução perfeita, mas apenas se não examinarmos de perto o pensamento por trás dela. No fim das contas, havia somente duas situações possíveis em relação ao novo modelo da AOL Time Warner.

Em uma delas, era possível que os clientes da AOL não se interessassem muito pelo conteúdo próprio da nova empresa e, portanto, não haveria vantagem para a AOL Time Warner em possuir esse conteúdo. Nesse caso, oferecer conteúdo próprio era má ideia.

Na outra situação, os consumidores poderiam gostar muito do conteúdo próprio e rumar aos montes em direção à AOL. Aí tudo começaria a parecer mais interessante. Até considerarmos, porém, dois aspectos: a natureza do setor naquela época e a provável resposta da concorrência.

Quanto à natureza do setor na época, a AOL tinha por volta de 25 milhões de assinantes, o que correspondia a mais ou menos 30% de participação em um mercado que crescia muito rapidamente e estava em constante transformação. Os lançamentos de novas tecnologias cada vez mais frequentes e a rápida elevação do número de consumidores online colocavam essa participação de mercado em risco quase constante.

Na frente competitiva, era pouco provável que os concorrentes simplesmente assistissem à AOL roubar seu ganha-pão graças ao conteúdo Time Warner. Eles lançariam conteúdo online e se recusariam a distribuir qualquer coisa que a Time Warner produzisse, sendo online ou não. O resultado seria uma briga sangrenta, que se estenderia para além do mundo online até os espaços de mídias tradicionais, com efeito devastador para a lucratividade da Time Warner.

Na verdade, ao escolher criar diferenciação por meio de conteúdo próprio, a AOL Time Warner não conseguiu entender a lógica por trás de suas escolhas. Nesse caso, havia duas construções condicionais do tipo “se, então, mas”:

1 “Se” os consumidores não se interessarem tanto por conteúdo proprietário, “então” os concorrentes não retaliarão agressivamente quando fecharmos nosso conteúdo, “mas” nós não ganharemos dinheiro com o sucesso da iniciativa.

2 “Se” os consumidores se interessarem muito por conteúdo proprietário, “então” nós poderemos ganhar participação de mercado por meio da AOL e cobrar caro por nosso conteúdo, “mas” isso levará a uma retaliação da concorrência e batalha sangrenta nos negócios ligados a conteúdo.

As pessoas responsáveis pela fusão AOL Time Warner na época fizeram uma suposição (um “se”) e misturaram-na com os efeitos (os “então”). Ao fazer isso, criaram uma estrutura sem sentido, que não tinha apoio dos fatos: “se” os consumidores se interessarem muito por conteúdo proprietário, “então” os concorrentes não retaliarão agressivamente quando fecharmos nosso conteúdo “e” nós poderemos ganhar participação de mercado por meio da AOL e cobrar caro por nosso conteúdo.

A AOL Time Warner tentou obter o melhor de dois mundos, mas seus gestores quiseram fazê-lo sem se dedicar ao trabalho duro de descobrir um mecanismo por meio do qual o novo modelo funcionaria. Eles imaginaram um mundo maravilhoso no qual desejariam muito viver, mas não investiram tempo para descobrir como chegar lá –por meio da lógica condicional.

É perfeitamente possível, sim, ter uma abordagem sofisticada e rigorosa para pensar relações causais: aqueles que pensam de forma integrada fazem isso o tempo todo. O ponto de partida é o de que alguns líderes de muito sucesso, em vez de aceitar os trade-offs que o mundo apresenta, incumbem-se de superar essa situação e construir um modelo novo que resolva tudo melhor e crie valor.

SE + ENTÃO + MAS

  • (no caso Festival de Cinema de Toronto)

Um bom exemplo dessa abordagem integradora vem da história de Piers Handling, diretor do Festival Internacional de Cinema de Toronto. Antes de Handling, a maioria dos festivais de cinema operava com base numa relação condicional simplista:

1 “Se” você criar exclusividade, “então” você gerará buzz (ou seja, interesse da mídia), fazendo com que a indústria queira ir ao evento, “mas” a comunidade local ficará totalmente isolada da diversão.

Nessa estrutura, o festival convida pequeno número de filmes a participar e tem um júri composto de pessoas da indústria para premiar um dos poucos privilegiados. A presença das estrelas e a divulgação de um grande prêmio chamam a atenção da mídia para os filmes e deixam a indústria feliz, mas a comunidade local é totalmente excluída do festival; no máximo consegue ficar atrás das cordas de veludo na esperança de ver uma ou duas estrelas de cinema. Esse modelo excludente é o que predomina em festivais de cinema no mundo todo, mas não é a única opção.

Há também um segundo tipo de festival, baseado em outra sequência lógica condicional:

2 “Se” você criar inclusão, “então” desenvolverá uma comunidade local de amantes de cinema, além de uma indústria local vibrante, “mas” a maior parte da indústria estará bem menos interessada em ir ao festival. Esse segundo modelo é a base fundadora do Festival de Cinema de Toronto desde o princípio.

O festival se preocupa em ser o mais inclusivo possível, unindo-se à comunidade local e nutrindo uma paixão por cinema dentro dela. Isso cria uma base local forte de frequentadores e voluntários, mas não há tanta atração para a grande indústria de cinema. Caso Handling não tivesse entendido a lógica causal em jogo, poderia ter simplesmente presumido que não havia problema e tentar mesclar os dois modelos, sem questionar até que ponto um movimento como esse seria possível.

3 “Se” você criar inclusão, “então” gerará interesse da mídia, fazendo com que a indústria queira ir ao festival, “e” você desenvolverá uma comunidade de amantes locais de cinema, além de uma indústria local vibrante. Handling percebeu que a lógica causal não dava apoio à estrutura que ele queria: um festival inclusivo e orientado à comunidade que também gerasse notícia e chamasse a atenção da indústria. Quando ele assumiu a direção do festival, em vez de ignorar a tensão entre exclusividade e inclusão, ele trabalhou para encontrar um meio de chegar a seu objetivo.

Para fazer isso, mergulhou na lógica de cada um dos modelos para achar um modo de ter ambos, buscando um ponto de apoio que permitisse ao Festival Internacional de Cinema de Toronto ter tanto a atratividade gerada pela exclusividade como todos os benefícios da inclusão, tanto o envolvimento da indústria como o apoio das bases.

Com sua equipe, Handling analisou mais a fundo os aspectos de destaque do problema e as relações causais. Ele perguntou: quem tem mais importância para o festival e o que eles mais querem? Ele pensou em incentivos para todas as partes envolvidas: o público quer ver filmes que vão adorar (e talvez ver Brad Pitt); estrelas querem a atenção da mídia para seus filmes; patrocinadores querem exposição e acesso ao público; a imprensa quer uma história para cobrir; e a indústria quer um incentivo financeiro. Nesses incentivos, Handling enxergou um modo de alavancar as relações causais que os outros festivais não perceberam.

As pessoas mais “por dentro” da indústria frequentam Cannes por causa da Palma de Ouro, mas o maior prêmio de Cannes é, em última instância, vazio. Os últimos cinco vencedores conseguiram uma média de bilheteria de apenas US$ 16,5 milhões cada um. Isso acontece porque os vencedores são os filmes favoritos de um pequeno grupo elitizado de iniciados.

Nesse caso, Toronto tinha uma vantagem: uma enorme comunidade de amantes de cinema que se comportavam (e gastavam) de forma semelhante ao restante do mercado de cinema norte-americano. Handling sabia que tinha um público interessante, porque seus patrocinadores lhe disseram isso, e também sabia que deveria alavancar a similaridade dos públicos de Toronto e do resto do mundo para dar um incentivo financeiro para a indústria e criar uma história para a imprensa, além de exposição para as estrelas. Mas como? Que mecanismo ele poderia utilizar? A resposta: o Prêmio Escolha do Público, que já constava do repertório do festival, mas sem destaque.

Handling entendeu que essa premiação seria um sinal para produtores e distribuidores do que realmente faria sucesso no mercado; caso se tornasse peça central do festival, ele criaria uma história para a imprensa e um atrativo para as estrelas. No final ele não poderia estar mais certo. O Prêmio Escolha do Público tornou-se uma honra valorizada e mundialmente reconhecida: os últimos cinco vencedores acabaram arrecadando uma média impressionante de US$ 103 milhões e grande quantidade de indicações ao Oscar. Handling conseguiu alavancar o maior benefício do modelo inclusivo (um público grande e altamente envolvido) e oferecer o maior benefício do modelo exclusivo (espaço na mídia por meio do envolvimento da indústria).

O crescimento do Festival Internacional de Cinema de Toronto baseado no insight de Handling tem sido notável. Ele se tornou porta de entrada do mercado de cinema norte-americano. Handling demonstrou habilmente quais são os ganhos possíveis quando mergulhamos nas lógicas causais concorrentes e buscamos um modo de integrá-las de forma inteligente e estratégica, em vez de misturá-las sem a análise adequada.

Complexidade

“Sob que condições X causa Y?”, “Qual é a força motriz dessa relação?”, “Quais são os mecanismos por trás dela?”. Ao fazer tais perguntas, quem pensa de forma integrada aceita que relações causais são obscuras, confusas e cheias de complexidade.

E explicitamente procura entender o escopo completo dessas relações, de múltiplas perspectivas, para construir um modelo causal consistente.

Pensar na lógica de nossas escolhas de maneira cuidadosa e explícita não é algo automático. Mas, seguindo o exemplo dos pensadores integradores, podemos aprender a usar uma abordagem mais rigorosa para pensar sobre as relações causais.

Pensamento comum versus Pensamento integrador

Toda vez que nos vemos diante de uma decisão, seguimos ao menos dois passos básicos, não é?

  1. Decidimos o que se destaca, escolhemos em que prestar atenção, o que é relevante e o que não é.
  2. Procuramos entender o que estamos vendo, observando as relações entre os fatos de destaque e levando em conta a lógica causal disponível. Arquitetamos o problema de forma que ele faça sentido para nós, baseados nas variáveis e em como elas interagem, e chegamos a uma solução.

A maioria de nós, em grande parte das vezes, faz o máximo possível para simplificar esse processo: reduzimos o número de variáveis ao mínimo, pensamos nos tipos mais simples e diretos de relações causais, dividimos o problema em partes que conseguimos gerenciar e então aceitamos como inevitáveis as concessões (ou trade-offs) exigidas. Fazemos tudo isso, porém, de modo implícito, errando ao não analisar profundamente nosso raciocínio, em cada estágio, e assim nos tornamos vítimas de um passo em falso na lógica. Aqueles que pensam de forma integradora nos ensinam a:

  • levar em consideração mais aspectos do problema como importantes para a resolução;
  • cogitar tipos mais complexos de relações causais entre os aspectos;
  • manter o problema completo na mente enquanto trabalhamos em partes individuais;
  • achar soluções criativas.

E fazem tudo isso de forma explícita, esforçando-se para entender “o pensamento por trás do próprio pensamento”, submetendo-o a um exame minucioso e procurando falhas na subestrutura lógica.


Fontes: Revista HSM Management. Roger Martin é diretor da Rotman School of Management, da University of Toronto, do Canadá, professor de gerenciamento estratégico e autor de Design de negócios (ed. Campus/ Elsevier). Jennifer Riel é diretora associada do centro de pensamento integrador da Rotman School, que leva o nome de Desautels.