Amil em Harvard e o empreendedorismo contínuo

Em 1982, o médico Jorge da Rocha foi aos Estados Unidos em busca de um professor brasileiro da Boston University que, segundo lhe contaram, poderia ajudá-lo a resolver um problema insolúvel no Brasil: montar um sistema de informações gerenciais para sua empresa, a Amil, algo então inédito em nosso mercado de saúde —ainda mais para uma companhia de assistência à saúde de pequeno porte, como era a sua então.

A viagem rendeu: não só ele conseguiu o que procurava, como ainda teve um valioso insight, que dividiu, na volta, com o fundador da Amil, Edson Bueno. Para Rocha, ficara nítido que a verdadeira razão da riqueza da sociedade norte-americana é o conhecimento.

Bueno quis ir conferir ele mesmo a ideia. No início de 1983, os dois aterrissaram no aeroporto de Boston em uma fria noite de domingo, passaram de táxi pela biblioteca da Harvard Business School e pararam: ela chamava a atenção pela imponência e por ter todas as luzes acesas às 10 horas da noite.

Estava lotada de executivos estudando. “Essa imagem nos marcou para sempre”, disse Jorge da Rocha, presidente da Amil Assistência Médica Internacional, em um depoimento emocionado no vídeo que está circulando no que hoje é um grupo de empresas enorme, formado por cerca de 22,3 mil funcionários. “Ali percebemos que, se quiséssemos realmente construir uma grande empresa, teríamos de nos apoiar no conhecimento”, afirmou.

O vídeo foi produzido para comunicar a todos os colaboradores que a Amil se tornara um estudo de caso em Harvard, “Amil and the Health Care System in Brazil”, pelas mãos de sua mais importante professora de gestão de saúde, Regina Herzlinger.

E, embora esse tipo de vídeo tenha função motivacional, a razão para orgulho é real. Virar estudo de caso em Harvard pode ser considerado o equivalente empresarial do Oscar de melhor filme. Trata-se do método de estudo mais tradicional e consagrado do mundo dos negócios, e entre as brasileiras que tiveram tal honraria estão Ambev, Embraer e Vale.

Em gestão de saúde, isso ganha contornos especiais, porque Herzlinger, cujo mais recente livro tem o sugestivo título “Quem matou o health care”, veio buscar inspiração para a saúde dos EUA em um país emergente tanto quanto o procura no sistema suíço. Como, porém, Harvard descobre uma empresa? Por sorte? Dinheiro importa? Como apura as informações? O que acontece depois?

HSM Management foi investigar esses bastidores, descritos a seguir, e igualmente fez uma descoberta: Harvard atirou no que viu e acertou também no que não viu. Em outras palavras, Herzlinger foi atraída pelo Sistema Integrado de Saúde que a Amil montou nos últimos três anos, mas, ao descrever suas causas e consequências, revelou o raro empreendedorismo contínuo de uma empresa estabelecida.

O INTERESSE E A PRODUÇÃO

O case começou a nascer em novembro de 2010, quando Regina Herzlinger fez uma palestra no Health Summit, em São Paulo, a convite da Amil e da HSM, sobre sua especialidade: “health care privado com foco no paciente”.

Crítica voraz da maioria das instituições de saúde dos EUA por não serem voltadas para os clientes, ela se queixa da falta de poder de escolha destes; seu próprio plano de saúde lhe é imposto pela Harvard University.

No almoço da palestrante com executivos da Amil após a apresentação, eles confessaram admirar suas ideias e contaram que tinham implementado algumas delas no Brasil, como a verticalização seletiva, em que, além da operação, a empresa oferece médicos, clínicas, hospitais e laboratórios próprios, mas não obriga o paciente, em boa parte dos planos, a ir a eles —há livre escolha na rede credenciada. “Nossos executivos mostraram à Regina que, enquanto cada player especializado nos EUA vê e atende uma parte do elefante, a Amil consegue ver e atender o elefante inteiro —e mantendo o poder de escolha do usuário”, explica Dulce Pugliese, cofundadora do Grupo Amil e vice-presidente do conselho de administração da Amilpar, usando o “elefante” como metáfora para o negócio da saúde.

Herzlinger voltou para Boston e, em fevereiro de 2011, propôs à Amil desenvolver o estudo, avisando que a empresa não poderia interferir em nada. O trabalho de coleta foi feito, em quatro intensos meses, pelo pesquisador sênior da HBS para a América Latina, Ricardo Reisen de Pinho, que foi executivo do setor financeiro e é membro do conselho de administração de várias companhias.

Pinho entrevistou gestores da Amil e da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) —que deu informações sobre os clientes e a concorrência— e consultou uma série de fontes secundárias.

A professora escreveu o caso e, em junho de 2011, a Amil recebeu-o para revisão de números. Pugliese até achou que a prática de reduzir preços aumentando a qualidade precisava ser mais bem explicada para não parecer artificial —“reduzir infecção hospitalar corta custo”—, mas Herzlinger não autorizou a empresa a fazê-lo. De qualquer modo, como todos na Amil concordaram, a essência de sua gestão estava ali.

ESTUDO DE CASO

Após um panorama inicial do mercado de saúde no Brasil —público e privado— e uma breve história da Amil, o estudo destacou:

• Cultura.

Como Herzlinger escreve, “durante anos, os gestores mais graduados eram médicos, com pouca ou nenhuma formação em gestão” (ainda são, mas agora têm formação complementar em gestão). O sensibilizador convívio com o sofrimento dos pacientes teria levado a Amil a desenvolver uma cultura voltada para os clientes e também para os colaboradores, a fim de que estes cuidem dos clientes, “pautada pela qualidade da saúde e pela acessibilidade”.

• Essência do modelo de negócio.

Enquanto a maioria das operadoras brasileiras se concentra nos clientes corporativos, de markup inferior, porém mais “seguros”, a Amil tem ampla gama de produtos de atendimento voltados tanto para clientes corporativos quanto para pessoas físicas de renda variada por meio de marcas como OneHealth, Amil, Medial e Dix. Vende também serviços adicionais, como o Amil Resgate Saúde e a assistência internacional.

• Expansão horizontal e vertical.

Como cerca de 75% dos custos fixos de uma prestadora de saúde são despesas com hospitais, centros médicos, laboratórios e médicos, a empresa vem fazendo uma série de aquisições e promoveu a integração vertical para reduzi-los, entre outras coisas, com mais eficientes rotinas apoiadas em tecnologia e processos e o reforço de seu poder de compra com os fornecedores de materiais.

• Sistema Integrado de Saúde.

Em 2009, a Amil apresentou o conceito, um modelo de assistência que permite a transferência de pacientes entre hospitais gerais e especializados e centros médicos conforme suas necessidades. Isso garante tanto um serviço mais preciso e rápido ao paciente como um uso melhor e mais eficiente de recursos. Os pacientes são segmentados em três níveis, o que, por sua vez, determina as condições dos contratos com os médicos:

  • I (emergências e primeiros socorros)
  • II (consultas por especialidade)
  • III (doenças crônicas ou probabilidade de desenvolvê-las; são 12% da base de clientes e respondem por 60% das despesas médicas).

“Os profissionais dos níveis I e II, por exemplo, devem encaminhar os pacientes de nível III para profissionais de nível III, e estes podem receber bônus associados a metas”, escreve Herzlinger (se, na frequente pesquisa de satisfação que a Amil faz com os pacientes, estes não souberem o telefone celular de seus médicos, perdem pontos).

• PAQV e GPAR.

O sistema integrado é acompanhado por estratégias de prevenção de doenças e pelo Programa Amil Qualidade de Vida (PAQV ), em que são feitos perfis dos usuários dos planos corporativos para tomar medidas preventivas a distúrbios cardíacos, diabetes e câncer de próstata e de mama.

Como relata Herzlinger, a Amil ainda desenvolveu o software chamado Gestão de Pacientes de Alto Risco (GPAR ), para identificar grupos de clientes com esse perfil e “monitorá-los de acordo com os protocolos existentes”. Entre os nove grupos de risco identificados estão idosos e mulheres grávidas.

• Gestão de riscos.

Segundo o case HBS, investimentos em tecnologia da informação e em processos são fundamentais para explicar a abordagem da Amil. A empresa gerencia o risco médico com base no conceito de “liberdade assistida”, conferindo poder de decisão a funcionários e associados, mas monitorando-os e controlando-os com processos, e vai “tomando medidas preventivas e corretivas sempre que necessário”.

Um exemplo é sua telemedicina, que permite a médicos de nível I em áreas remotas trocar ideias com especialistas de São Paulo. Já o risco de cobrar o preço fixo por um evento desconhecido é diluído, por exemplo, pelo rastreamento dos funcionários dos clientes corporativos (análise do trabalho, hábitos e estilo de vida de cada um para ajustar os prêmios, além de tomar medidas preventivas).

O risco de uma má exposição na mídia, que preocupa toda empresa, é prevenido com ferramentas de mídia como o portal www.podtersaude.com.br, “no qual médicos e jornalistas discutem qualidade de vida e questões de saúde”, e com iniciativas de responsabilidade social, como a abordagem de “surtos de doenças como a dengue, normalmente não cobertos por planos de saúde”, cujas vítimas ela fez questão de atender e o divulgou em campanhas publicitárias.

• Operações.

Herzlinger enfatiza que a rede própria é grande, mas a rede de terceiros responde por 70% das despesas médicas. O case mostra o esforço da Amil para otimizar recursos e servir melhor os clientes, ilustrando-o com a criação de pequenas redes regionais dentro das cidades maiores e o incentivo aos médicos a utilizar seus consultórios como “sedes”, com ferramentas gerenciais da empresa.

A AULA INAUGURAL

A aula inaugural de 2011 do MBA de gestão de saúde da professora Regina Herzlinger na Harvard Business School seria sobre o case Amil e foi marcada para o final de agosto de 2011, com a presença de executivos da empresa. Na véspera, já era nítido o interesse despertado pelo estudo, quando representantes de vários clubes de Harvard quiseram encontrar-se com Pugliese para saber mais da empresa —o clube das mulheres, o latino-americano, o de health care. E a aula, com mais de 40 alunos do mundo inteiro, levou duas horas.

Como é próprio do método “case study”, Herzlinger pedira aos alunos que lessem o texto antes para responder a uma pergunta em sala: “Há duas potenciais aquisições de operadoras de saúde para a Amil fazer no Brasil —a Lynx e a Samcil. Qual ela deve escolher e por quê?”. A professora também instigou a turma a avaliar se a Amil possuía as seis forças que geram inovação no setor de saúde: players, recursos, políticas públicas, tecnologia, clientes e accountability.

As respostas dos estudantes foram interessantíssimas, assim como as perguntas que fizeram a Pugliese, nas palavras do diretor Paulo Marcos Senra Souza: “Eles nos deram muitas ideias, inclusive, e mencionaram coisas que já estamos fazendo”. O que queriam saber? Por exemplo, se a Amil não se interessaria em vender sua tecnologia, até em outros países, ou se, dada a escassez de profissionais —médicos, enfermeiros, técnicos de enfermagem— no País, ela não planejava montar centros de ensino, e assim por diante.

Uma curiosidade: a Amil acabou comprando a Lynx, só que, naquele momento, tratava-se de uma negociação sigilosa. DEPOIS DA AULA Regina Herzlinger pareceu gostar muito do novo relacionamento que inaugurou com a Amil. Avisou que reescreveria o caso em breve para contemplar questões levantadas pelos estudantes, pediu que a mantivessem informada de toda e qualquer evolução do modelo de negócio da empresa, disse que voltaria ao Brasil mais vezes.

Mais significativo de tudo, no entanto, foi sua sugestão de a Amil fazer uma fellowship, ou seja, estruturar um programa para receber alunos do MBA de health care da HBS. Empresas como o Google fazem isso.

E, assim, a Amil, que se aproximou de Herzlinger com base em sua vontade de aprender, transforma-se em escola.

No início de julho, a empresa recebe seu primeiro fellow norte-americano para um programa de dez semanas focado em inovação estratégica em serviços de saúde. O custo corre inteiramente por conta da Amil, mas vale a pena, segundo Paulo Marcos. “Isso nos obriga a organizar e entender melhor nossas forças”, diz ele. “Já valeria a pena só pela felicidade que isso causou aos gestores que criaram e gerenciam os programas”, complementa Dulce Pugliese.

O OUTRO ALVO ACERTADO

O “empreendedorismo” contínuo e eficiente da Amil é insinuado ao longo de todo o case, embora não nomeado. Fica evidente, por exemplo, no item “cultura”, porque esta é ativamente construída, com treinamento e campanhas publicitárias. Ou na vontade de aprender, citada várias vezes. Ou na gestão de risco, já que a Amil implantou o primeiro sistema de underwriting do setor no Brasil (a ciência de calcular um risco e criar preço adequado para ele em um sistema eletrônico), depois de aprender sobre ele nos EUA .

Nem é preciso explicar o empreendedorismo por trás do Sistema Integrado de Saúde, que, com muita tecnologia e inteligência médica, reduziu custos e abriu portas para planos para a classe média emergente. A maior evidência do empreendedorismo contínuo da Amil, porém, é que, menos de um ano depois do estudo de caso de Harvard, já há um grande número de novidades na empresa.

Pugliese não quer falar muito delas, mas suas atuais funções na corporação são reveladoras: ela é a responsável pelo comitê de ensino e pesquisa e pelo de sustentabilidade —esta, entendida no sentido amplo de garantir o futuro da organização. O laboratório Excellion e o Hospital das Américas ilustram bem isso.

A Amil evita personalizações, mas Dulce Pugliese é, sem dúvida, um “peso-pesado” empreendedor para essas áreas. Responsável pela operação norte-americana da Amil até seu encerramento, estava ligada diretamente a uma das maiores fontes de aprendizado do negócio, e em seu currículo constam desde a criação do primeiro CTI (centro de terapia intensiva) pediátrico da América Latina, no Hospital Somicol de Duque de Caxias (RJ), até o primeiro atendimento telefônico 24 horas de uma operadora de health care nos EUA .

Se a internacionalização está nos planos empreendedores? “Nunca deixou de estar”, apressa-se a responder Pugliese, sem pormenores, mas ressalvando que o mercado brasileiro também tem muito por fazer (74% da base de clientes está em quatro estados).

Na Amil, contudo, o empreendedorismo não é só o das grandes iniciativas. Como diz Paulo Marcos, parafraseando o arquiteto Mies van der Rohe, “o diabo está nos detalhes” e é preciso ser empreendedor para lidar com cada um deles. “Por exemplo, um desafio é resolver o problema de ausência nas consultas sem fazer o que a concorrência faz, de marcar três pacientes para o mesmo horário, porque o overbooking é tão ruim quanto a ociosidade”, explica o executivo. Ele resume: “O caso da Amil é muito empreendedorismo, o tempo todo, associado à coragem de mexer em time que está ganhando”.

LEGADO DO CASO

O modelo de health care dos sonhos de Herzlinger é o suíço: todos os cidadãos são obrigados a comprar seguro de operadoras privadas e estas pagam os hospitais, governamentais, para atendê-los. Seria ele replicável em países com população superior a 7,8 milhões de habitantes e sem uma renda per capita tão elevada como a suíça? Dificilmente.

Uma comparação como essa e um distanciamento como o de Harvard podem mesmo trazer à tona qualidades de gestão que, segundo Peter Drucker dizia, a “autocrítica excessiva” dos brasileiros impede de ver. O estudo de caso já valeria por isso, porém tem mais subprodutos: o fortalecimento das marcas Amil e Brasil diante de formadores de opinião, a estruturação da empresa para ensinar (e aprender), o orgulho da equipe —itens que geram mais empreendedorismo.

Uma cidade da medicina

Uma “medical city” é como os gestores da Amil descrevem seu Hospital das Américas, erguido no bairro carioca da Barra da Tijuca e previsto para abrir parcialmente este ano. O complexo englobará dois blocos de hospital, um de consultórios médicos (só com grandes especialistas), um de serviços complementares e um de auditório —incluirá uma sala de simulação para cirurgia robótica que o Brasil não tem. A expectativa é de que se torne um centro de referência nacional e, talvez, internacional.

Vale acrescentar que a edificação é “verde”, ou seja, segue os padrões de sustentabilidade estabelecidos pelo Green Building Council para redução dos impactos ambientais. Embora ainda em discussão, pode ser montado, no mesmo local ou próximo, um centro de treinamento Amil também para profissionais de enfermagem, tanto internos como externos.

A Excellion e a área de pesquisas

Há dois anos, a Amil adquiriu o hospital Pró-Cardíaco (RJ), e com ele veio essa empresa de pesquisas de células-tronco e terapia celular. Trata-se do único laboratório do Brasil autorizado a fazer, além da manipulação, a multiplicação celular, necessária à terapia. A Excellion Serviços Biomédicos representará o início das pesquisas para a empresa, que pretende focar tecnologias órfãs (que não geram patentes e, portanto, tendem a ser abandonadas pela indústria farmacêutica em geral, mas causam benefício imenso aos pacientes e ao sistema de saúde). O diferencial da Amil é poder oferecer a aplicação da pesquisa a pacientes de 30 hospitais (somando os da empresa e os de Edson Bueno).


Fontes: HSM Management