Cisco: otimização e reinvenção tecnológica

Enquanto se esforçava para atender à demanda crescente dos anos 1990, a Cisco não enxergava o cenário potencial de demanda declinante. Mas ele veio, com o estouro da bolha das empresas ponto.com. Diante de enormes estoques, a Cisco converteu US$ 2 bilhões em perdas.

Voltando-se para sua cadeia de valor, realizou mudanças importantes no sentido da eficiência operacional, mas que, com o tempo, geraram retornos decrescentes. A companhia identificou, então, que era preciso reinventar-se. Começou com uma meta ousada: ser líder mundial em gestão de cadeia de valor no período de três anos.

O caminho da virada passava por otimizar suas operações e transformar- -se simultaneamente, para gerar valor ao cliente.

A gigante de US$ 40 bilhões começou este milênio com a cadeia de valor desconectada do valor para o cliente e com um susto (um prejuízo) de US$ 2 bilhões. Mas, como recorda Inder Sidhu, vP sênior da empresa, ela virou o jogo.

Dois bilhões de dólares. Esse foi o preço pago pela Cisco por seus erros em gestão da cadeia de valor. Mais especificamente, por não ter conseguido equilibrar eficiência operacional e transformação, priorizando uma em detrimento de outra. Foi “um dos mais onerosos fiascos em cadeia de valor da história dos negócios”, segundo afirma o próprio vice-presidente sênior de estratégia e planejamento mundial da Cisco, Inder Sidhu, recordando os eventos que sucederam ao estouro da bolha das empresas ponto.com.

No entanto, a Cisco foi capaz de promover uma virada. Tornou-se uma das melhores referências em gestão da cadeia de valor, trabalhando com mais de 300 famílias de produtos, ou 23,5 mil itens, que incluem switches, roteadores e conversores digitais para televisão.

Hoje, a maioria dos produtos é organizada de maneira customizada por meio de uma série de terminais logísticos regionais e embarcada para qualquer país a partir de unidades localizadas em três continentes. A maior parte dos produtos é produzida sob encomenda e entregue ao cliente sem que qualquer funcionário da empresa os tenha tocado. Em 2001, no entanto, essa engrenagem não funcionava tão bem. Neste artigo, Sidhu relata a retomada a partir de uma meta audaciosa e do esforço coletivo. A Cisco conseguiu otimizar operações e reinventarse, fazer a sintonia e transformar-se simultaneamente. “Ainda não é Miss Universo, mas está na disputa”, resume, otimista, o autor.

Tomada de consciência

No final da década de 1990, a Cisco havia se tornado o fornecedor preferido de equipamentos e expertise em internet. No ano 2000, teve 55% de aumento em faturamento, atingindo US$ 19 bilhões. Seu valor de ação, que era de pouco menos de US$ 16 em outubro de 1998, passara a US$ 80 quinze meses depois. Mas o sucesso trouxe dois desafios principais:

  • Prazo de entrega: os clientes chegavam a triplicar suas encomendas, para contornar a demora.
  • Escassez de componentes: produtos Cisco concorriam uns com os outros por componentes terceirizados, além de os disputarem no mercado.

A solução encontrada foi construir mais fábricas, mas o diferencial da companhia não era sua produção, e sim a inovação de produto e as relações com clientes. Então, para reforçar suas capacidades na cadeia de valor, decidiu:

  • terceirizar mais;
  • conectar os sistemas de TI e de operações de terceiros com o próprio;
  • assumir o controle do estoque de seus fornecedores terceirizados;
  • adotar o modelo de consignação.

Mas eis que a bolha das ponto.com estourou em 2001 e o impensável aconteceu: muitos clientes desapareceram da noite para o dia. Em menos de cem dias, a taxa de crescimento anual da Cisco caiu de 66% para –45%. No entanto, os fabricantes terceirizados continuaram a produzir, pois ainda se pensava que fosse um declínio momentâneo. A situação piorou de tal maneira que a Cisco teve de dar baixa em mais de US$ 2 bilhões em produtos como perda.

Diagnóstico principal: cegueira

Ainda que diversos fatores tivessem contribuído para o problema, a causa subjacente a ele era um tanto simples: para fazer frente à demanda, a Cisco se reinventou, mas à custa de otimização operacional. A cadeia de valor da empresa no final dos anos 1990 tinha a finalidade única de atender à demanda, não importando se isso exigisse fornecer capital de giro aos fornecedores terceirizados ou fretar aviões para entregar os produtos. O otimismo com que a companhia via o boom das ponto.com a cegou para o fato de que sua cadeia de valor, concebida em torno de poucas linhas de produtos, carecia de flexibilidade para lidar com a expansão de seu portfólio.

Outro problema era a grande complexidade do ambiente que criara, composto por feudos organizacionais, parceiros em produção e especialistas em logística terceirizados. A empresa teria de coordenar as atividades de diferentes unidades e entidades, tecnologias díspares e diversos fusos horários. Além disso, sabia que não poderia tirar vantagem de transições de mercado ou se preparar para mudanças na economia como as empresas que possuíam excelência em gestão de cadeia de valor. Nessas organizações, a cadeia de valor é prioridade da alta direção, que a entende como fonte de vantagem competitiva.

Tendo feito, então, o escrutínio de toda a cadeia de valor, a Cisco identificou 45 partes da empresa que tinham impacto direto sobre produção e distribuição. Também descobriu que mais de 120 planilhas diferentes eram usadas para apoiar a tomada de decisão sobre a cadeia de valor. Havia métodos diferentes de análise das métricas-chave, e cada unidade da empresa usava uma ferramenta própria de automação. Tais ferramentas não trabalhavam juntas, porque tinham sido construídas em uma época em que havia muito dinheiro entrando e nenhum departamento se importava com o outro.

Juntando as partes

A operação da cadeia de valor da Cisco foi aperfeiçoada quando a empresa começou a otimizá-la. Isso incluiu:

  • reformular sua estrutura organizacional;
  • racionalizar sua estratégia de parceria;
  • tornar mais eficiente seu estoque de produtos.

Em um esforço coletivo, a companhia racionalizou o estoque de componentes com que trabalhava e eliminou milhares de SKUs (unidades de manutenção de estoque, na sigla em inglês). Também reduziu o número de fornecedores de componentes e de fabricantes terceirizados e passou a ser mais próxima dos parceiros, agora em quantidade menor. Adotou um programa de fornecedor preferencial, que reduziu o número de fornecedores de 1,3 mil para menos de 300 em quatro anos; o de fabricantes terceirizados caiu de 20 para quatro.

A Cisco também trabalhou no sentido de equipar seus fornecedores com tecnologia e processos avançados para poder enxergar toda sua cadeia de valor. Substituiu, ainda, o sistema de e-mails e planilhas por um moderno que promovesse o alinhamento e aperfeiçoasse as previsões entre várias unidades de negócios, equipes de vendas e fábricas.

No que tange à estrutura organizacional, a companhia embutiu a perspectiva de longo prazo. Por exemplo, seus master schedulers, que deveriam acompanhar tanto a saída diária dos produtos como fazer o planejamento de estoque, raramente tinham oportunidade de considerar o longo prazo da cadeia de valor. Por esse motivo, a função foi dividida em dois cargos: especialista de curto prazo e planejador de longo prazo. Assim, o planejamento para mudanças em padrão de compras e em condições de negócio melhorou.

Mais do que efetuar alterações em processos e tecnologia, o trabalho da Cisco entre 2000 e 2005 significou forte mudança cultural. Os gestores da cadeia de valor tiveram de trabalhar como equipe. Como resultado, as métricas da empresa foram aperfeiçoadas. O giro de estoque, por exemplo, aumentou em mais de 50% entre 2001 e 2005. E as previsões tornaram-se mais precisas.

Não foi suficiente

Nessa época, entretanto, os esforços de otimização começaram a gerar retornos decrescentes. O giro de estoque estacionou. A evolução em métricas era incremental, não transformadora. A Cisco, então, percebeu que a otimização não era suficiente. Precisava reinventar-se.

“Estávamos melhores, mas ainda não sabíamos bem o que queríamos ser”, recorda Sidhu. A resposta viria de um novo líder, que levou energia à equipe de produção ao colocá-la na direção da reinvenção novamente. Apenas então a empresa se concentrou em não fazer isso à custa da otimização.

Quando, porém, Angel Mendez, vice- presidente sênior de gestão global de cadeia de valor, começou a atuar na Cisco em 2005, as deficiências que tinham levado aos problemas de 2001 eram, em grande medida, coisa do passado. A companhia estava mais flexível, mas Mendez temia que a cadeia de valor não estivesse estruturada para acompanhar o crescimento global ou atender os clientes que rapidamente mudavam suas necessidades.

Outra preocupação do executivo era com a coesão integral da empresa. Enquanto grupos isolados melhoravam, não se focava o aperfeiçoamento da organização como um todo. Logo após assumir a produção, Mendez e sua equipe de líderes perceberam que a cadeia de valor tinha sido otimizada para uma era que não mais existia. O risco era a Cisco perder o pé na onda seguinte de mudanças em TI e telecomunicações.

A cadeia de valor não estava preparada para entregar soluções que fossem ao encontro de necessidades exatas dos clientes, incluindo requisitos únicos de mercados distintos. Também não estava pronta para assumir inovações de ruptura que pudessem mudar o modo de as empresas comprarem, implementarem e usarem a tecnologia. Era tempo de reinvenção.

Uma das primeiras decisões da equipe de Mendez foi fazer a companhia evoluir de um modelo “push” (que empurrava a oferta para o mercado) para um modelo “pull” (que respondia ao mercado). Em suma, significava fazer produtos baseados não em expectativas e sonhos, mas em pedidos reais dos clientes. Isso liberaria os fabricantes de abarrotar os armazéns com itens que poderiam nunca ser vendidos e promoveria eficiência e redução de risco. Mas também requereria alto grau de receptividade dos sistemas, o que não havia então.

Meta audaciosa

Para compreender melhor do que precisavam, Mendez e sua equipe estudaram 30 fabricantes líderes em tecnologia, produtos de consumo e até farmacêuticos. Por que a Cisco não poderia ser tão eficiente e eficaz do ponto de vista dos clientes como a Dell, o Walmart ou a Procter & Gamble?

O executivo finalmente anunciou: “Quero que tenhamos a meta de nos tornarmos líderes mundiais em gestão de cadeia de valor em três anos”. Levou mais do que alguns anos. Afinal, a Cisco nem era cogitada no ranking anual da AMR Research, que traz as 25 melhores empresas em excelência em cadeia de valor.

O índice AMR baseia-se em métricas quantitativas (quantos giros de estoque a companhia completou no ano, por exemplo) e intangíveis, estas colhidas entre fabricantes, pesquisadores, acadêmicos e especialistas da AMR. Para constar do ranking AMR, uma empresa deve ter desempenho brilhante e também atrair o reconhecimento de outras instituições e pessoas.

Até 2005, a Cisco nunca tinha recebido sequer uma menção no ranking. Mas Mendez teve a audácia de sugerir que a empresa tinha a vontade, o talento e os recursos para conquistar a coroa de Miss Universo da excelência em apenas três anos. Uma meta corajosa, para dizer o mínimo.

Por que mudar?

Para adotar um modelo que partisse da demanda, conquistasse mais eficiência e ainda o coração e a mente dos especialistas da AMR, a Cisco encarou um enorme desafio: os altos gestores da equipe de Mendez teriam de olhar para além de sua esfera imediata de ação e trabalhar juntos.

Ele, então, lançou o plano Manufacturing Excellence, ou Mx. Tratava- se de um programa para desenvolver uma cadeia de valor ágil, inovadora e baseada em colaboração, que viabilizasse produtos de alta qualidade e permeasse tecnologias, segmentos de clientes, regiões geográficas e parcerias.

Pouco tempo depois de lançado o Mx, cerca de metade das 1,9 mil pessoas sob responsabilidade de Mendez assumia novos papéis. Quem estava fechado em feudos teve de trabalhar em colaboração com outras áreas. Engenheiros de produto e de fábrica tiveram de pensar juntos a questão da qualidade. Planejadores de demanda tiveram de conversar com fornecedores, fabricantes e parceiros que mal conheciam. O que se esperava de todos é que tivessem visão do todo.

Alguns aprovaram as mudanças, outros não. A cultura e a mentalidade, e não a complexidade, eram grande parte do desafio. Os que não sentiam necessidade de mudar não sofriam a dor da ineficiência; já que estavam entregando pedidos e usando os sistemas existentes com eficiência, não percebiam o valor que estava represado por sua maneira de fazer as coisas ou as oportunidades que estavam diante deles.

Porém a equipe multifuncional, unida, podia ver que extrair eficiência de um fluxo físico de produtos era menos importante do que gerar valor para os clientes. Cada função da cadeia de valor passou a ser encarada como parte do esforço para estimular a inovação e aumentar a relevância da Cisco para os clientes.

Para garantir que o Mx criasse raízes, algumas providências foram tomadas:

  • Desafios foram designados às pessoas das áreas de cadeia de valor, vendas e engenharia, que deveriam, coletivamente, solucionar problemas comuns.
  • O papel de cada um seria categorizado não por produto, mas por processo e logística.

De especialistas em produtos, os funcionários passaram a especialistas em cadeia de valor. Os gestores passaram a colaborar uns com os outros mais do que nunca e também assumiram responsabilidade por um conjunto mais amplo de questões. Isso representou mudanças em cada aspecto da organização.

Apesar dos ganhos para a Cisco, alguns de seus líderes resistiram às mudanças e pediram transferência, outros pediram demissão. Uma das razões para isso é que a nova cultura tinha posto fim ao jogo de culpar o outro –um fornecedor, um departamento ou uma força externa. Se havia um problema, tinha de ser reparado pela equipe de Mendez.

Transformada

Atualmente, a empresa consegue fazer previsões apropriadas, que lhe permitem operar com apenas uma fração do estoque que costumava manter. O giro de estoques da produção, por exemplo, é de quase o dobro do que costumava ser. Além disso, a companhia é capaz de reagir mais rapidamente às solicitações dos clientes e entregar com mais confiabilidade. A qualidade dos componentes e dos produtos montados que saem das fábricas parceiras aumentou e toda a cadeia de valor foi aperfeiçoada para atender China, Índia e muitos países emergentes de um modo que o sistema antigo não conseguiria. Ao sintonizar e transformar simultaneamente, a Cisco conquistou ganhos significativos.

Hoje, sua cadeia de valor gerencia o dobro da receita da época do estouro da bolha das ponto.com, com metade das pessoas. “A Cisco se manteve à frente de todas essas mudanças ao construir uma cadeia de valor que emprega mais de 8 mil pessoas em 50 localidades de 17 países”, comenta Mendez, que acrescenta: “Não teria sido possível se não tivéssemos realizado três coisas: estabelecido uma meta tão radical que todos tinham de notá-la, olhado para nossos parceiros e sistemas da perspectiva ponta a ponta e, finalmente, levado em consideração o que é importante para o cliente”.

Há quatro anos, a Cisco entrou para a lista das 25 melhores da AMR e vem galgando posições desde então. No ranking de 2010, a empresa ficou em terceiro lugar, atrás apenas da Procter & Gamble e da Apple. Ainda não é Miss Universo, mas está na disputa.

ESCADA E DELL TAMBÉM PENDERAM PARA UM DOS LADOS

Os casos da Escada e da Dell são emblemáticos da necessidade de equilibrar otimização operacional e capacidade de inovação. A Escada é uma grife de luxo alemã que veste celebridades desde os anos 1970. Reconhecida como definidora de tendências, privilegiou o design em detrimento das operações. Acabou chegando aos anos 2000 com muitos problemas financeiros.

A Dell, que desenvolve e comercializa microcomputadores, servidores, softwares e outros produtos, foi fundada em 1984 por Michael Dell, quando ele tinha apenas 19 anos. Em 2005, encabeçava a lista das empresas mais admiradas da Fortune 500. Quatro anos depois, não estava nem entre as 50 mais, por ter-se estagnado em termos de design, embora tivesse alcançado a excelência operacional.

Declarada insolvente em 2009, a Escada foi adquirida pela Megha Mittal, que pertence ao grupo Arcelor Mittal, e está buscando aperfeiçoar sua disciplina financeira e operacional. A Dell, por sua vez, após o retorno de seu fundador à posição de CEO, vem tentando superar o passado com foco renovado em inovação.

SAIBA MAIS SOBRE INDER SIDHU

Inder Sidhu iniciou sua atuação na Cisco, fornecedora de soluções em redes e comunicação, em 1995. Desde então, foi executivo líder nas áreas de vendas, serviços e desenvolvimento de negócios. Hoje, é vice-presidente sênior de estratégia e planejamento das operações mundiais da Cisco e membro do comitê operacional da organização.

Indiano radicado nos Estados Unidos, mestre em engenharia elétrica e computacional, Sidhu é professor visitante da Harvard Business School, Stanford University e Haas School of Business, da University of California Berkeley.

Em 2010, lançou Doing both: how Cisco captures today’s profit and drives tomorrow’s growth (ed. FT Financial Planning Books), best-seller no qual identifica dicotomias comuns às empresas e aborda a trajetória da Cisco em inovação e desempenho.


Fontes: Revista HSM Management – este artigo foi adaptado do livro de Inder Sidhu Doing both: how Cisco captures today’s profit and drives tomorrow’s growth (ed. FT Financial Planning Books).