Entre 1985 e 2001, desde quando Bill Gates lançou o sistema Windows, a civilização mudou de modo tão rápido que ficou quase impossível acompanhar. Foi como se tivesse sido descoberto um novo continente, invisível, que está alterando as idéias convencionais sobre a criação de riqueza e a iniciativa humana.
No entanto, a era do descobrimento está por terminar e agora deve começar sua colonização. O problema é que ainda faltam exploradores bem-preparados para a tarefa: pessoas e empresas com capacidade de compreender a nova terra, de entender os vínculos entre as forças que a criaram.
Quem faz essa afirmação é Kenichi Ohmae, considerado um dos maiores especialistas em estratégia corporativa de todo o mundo, apelidado de Mr. Strategy, em seu novo livro O Continente Invisível.
Este artigo traz os highlights do primeiro capítulo, intitulado A era da exploração, em que Ohmae sistematiza as quatro dimensões do novo continente, que devem ser obrigatoriamente conhecidas e abordadas estrategicamente por quem quiser explorá-lo. Caso contrário, o risco de fracasso é alto.
Ao longo da história da humanidade, a descoberta de novas terras provocou mudanças repentinas devido ao contato com novas regiões geográficas e estilos de vida diferentes. À medida que pisavam novos continentes, exploradores e colonos iam modificando os modos de vida desses lugares, assim como os do mundo que deixavam para trás. As grandes viagens aconteceram porque pessoas com coragem e curiosidade –e, é claro, ganância– não conseguiram resistir à tentação da exploração.
Motivadas quase sempre pela possibilidade de comércio, essas viagens provavelmente acenderam a faísca criadora que mantém o avanço da civilização. Nos dias de hoje, não há mais continentes por descobrir ou explorar. Nos últimos anos, porém, a civilização mudou em escala planetária mais rápido e continuamente do que nunca. É como se um novo território tivesse sido descoberto –um continente sem terra, invisível.
Os locais em que vivemos são parte de um sistema geopolítico antiquado. Nesse velho mundo, as economias nacionais baseiam-se na propriedade da terra, no uso de máquinas e do capital e a atividade econômica depende do fluxo de tarifas e impostos. Os governos conduzem as economias e são os responsáveis pela taxa de inflação, pela disponibilidade de dinheiro e de empregos. Nas democracias, eles são julgados pelo povo de acordo com o nível de prosperidade que promovem. A macro e a microeconomia são iniciativas independentes.
Mas, quando uma nação atua com eficiência no ambiente do velho mundo, supomos que suas empresas, seu governo, seus sindicatos e consumidores progredirão – ou afundarão– todos juntos. Assim como, no passado, a descoberta de novos mundos transformou as coisas em que se acreditava, a exploração do “novo continente” está mudando posicionamentos e idéias a criação de riqueza e a iniciativa humana.
E, como sempre, o ímpeto explorador vem das empresas. De novo, pessoas com coragem e curiosidade descobriram novas formas que estão transformando irreversivelmente o modo de vida nos velhos continentes. A única diferença é que esse novo continente não tem terras, existe apenas na mente coletiva. É por isso que o chamo de “invisível”.
Contudo, do ponto de vista de seus efeitos econômicos, políticos e sociais, especialmente quanto aos negócios, o continente invisível é tão palpável e vital, tão tangível e sólido, que poderíamos apontá-lo em um mapa. O continente invisível é novo. Foi descoberto há 50 anos e começou a ser colonizado a partir de meados dos anos 1980. Apesar de tão curta história, sua presença é bem conhecida, mesmo óbvia, para quem presta atenção a mudanças em escala mundial.
Um crescente número de teóricos tenta mapear as características essenciais do novo continente e as forças que o trouxeram à luz. No entanto, ainda falta uma compreensão aprofundada das conexões entre tais forças.
Nem sempre se percebe que as mudanças dos últimos 30 anos se fortalecem mutuamente. Tampouco se reconhecem suas repercussões em organizações de negócios e de governo. Na esfera da política e dos negócios, vários tomadores de decisão já admitem que o mundo se transformou num ambiente político-econômico fluido e sem fronteiras. Estão cientes da importância do novo continente e de que suas decisões contribuem para dar-lhe forma, mas ainda não conseguem atuar nele de forma eficaz. Não sabem como traduzir seu conhecimento em ação. Por vezes, incorporam a mentalidade da corrida do ouro.
Os homens de negócios (assim como Bill Gates) sabem que, nos tempos iniciais de um novo continente, há oportunidade de ganhar muito dinheiro –se o território que ocuparem um dia se tornar, por exemplo, Hollywood ou Miami. No entanto, no afã de conquistar essa suposta riqueza, podem acabar envolvendo-se em aventuras arriscadas.
Em outras ocasiões, eles acabam ficando na expectativa, supondo que os novos ventos não os afetarão demais. Então se arriscam a ser superados, muito mais rápido do que suspeitam, por uma nova onda de concorrentes vorazes.
Para manter seu crescimento, no entanto, mesmo companhias com raízes no velho mundo, como a General Electric (GE) e a IBM, sentem-se compelidas a explorar as novas fronteiras. Sabem que, no velho mundo, somente prosperarão com cortes de custos e de pessoal.
As quatro dimensões do continente invisível
Muitas vezes os gurus da mudança limitam-se a descrever apenas parte da economia geopolítica emergente. É tentador para eles, por exemplo, conceber o continente invisível como uma simples metáfora da acelerada evolução da tecnologia de computação e de comunicações. Alguns chegaram a denominar o novo continente de “ciberespaço” –uma etiqueta enganosa.
Não há dúvida de que, não fosse pelos computadores e pela visão de Bill Gates, o novo continente jamais teria surgido. Mas eles não são o suficiente. Mesmo com mudanças tecnológicas, outras coisas poderiam ter impedido o surgimento do novo continente. A economia keynesiana havia sido revitalizada por um longo período de deflação na década de 1970.
A revolução Thatcher–Reagan (e a onda desregulamentadora que originou), poderia jamais ter acontecido. O espírito empreendedor poderia não haver sido reforçado pelo reconhecimento mundial do dólar norte-americano como plataforma de lançamento.
Em resumo, o novo continente tem quatro dimensões distintas e não se pode atuar nele sem entender de que maneira elas interagem. São as seguintes:
A dimensão visível
A importância da física quântica é reconhecida. Mas sabemos que continuaremos sofrendo os efeitos da gravidade, a mecânica newtoniana, no dia-a-dia. Da mesma forma, não é possível descartar todas as dimensões econômicas do velho mundo. Talvez não haja no continente invisível uma versão da “Japan Inc.” ou da “America Inc.” como entidades separadas lutando pelo domínio. Esse fenômeno pertence estritamente ao velho mundo.
Mais ainda há empresas, entidades, que crescem de forma constante e previsível, seguindo uma evolução linear. Quando chefiei a McKinsey no Japão, trabalhei principalmente na dimensão visível. Minha prática de consultoria incluía o cálculo de quanto pagar por companhias em aquisições. As estimativas de valor potencial eram baseadas na projeção matemática conhecida como valor presente líquido (VPL). Esse cálculo de custos e receitas futuras ainda determina a maioria das capitalizações no mercado –portanto, o valor das empresas. Os economistas concordam que o VPL continuará sendo um método adequado para fazer prognósticos precisos do desempenho das empresas.
De alguma forma, suas previsões poderiam ser úteis mesmo no continente invisível. A dimensão visível também perdurará em outras áreas. O comércio local continuará provendo bens e serviços. As padarias continuarão assando pães, os caminhões de entrega continuarão entregando mercadorias. Paradoxalmente, quanto mais crescimento for gerado por outras dimensões, mais crescimento haverá na dimensão visível.
A dimensão sem fronteiras
Há cerca de 20 anos, a questão do livre-comércio era muito mais controversa. Em novembro de 1999, houve protestos contra a reunião da Organização Mundial de Comércio (OMC), em Seattle, EUA. Embora tenham provocado manchetes, não há como comparar com o ocorrido no começo dos anos 80, quando houve um amplo movimento que pregava “compre produtos norte-americanos”, e quando um dos empresários mais eminentes dos EUA, Lee Iacocca, falava abertamente do livre-comércio com o Japão como um novo “perigo amarelo”.
Hoje, poucos ainda pensam assim. O mundo avançou em direção a uma economia sem fronteiras –ou na qual elas têm um papel muito menos importante. Isso aconteceu devido à crescente sofisticação e inter-relação de consumidores e cidadãos ao redor do planeta. As pessoas vivem um “clima de informação” internacional inimaginável na década de 1950 –a maioria das guerras do século XX teria sido diferente se, por exemplo, o canal de TV CNN tivesse sempre existido. O comércio eletrônico transcende fronteiras nacionais, tarifas e restrições comerciais. Tarifas e barreiras estão desaparecendo não apenas entre nações e regiões, mas entre empresas, empreendimentos com ou sem fins lucrativos e entre órgãos governamentais e não-governamentais.
Nessa dimensão, a imagem dos EUA ou do Japão como adversários econômicos é uma “ilusão cartográfica”, um erro de percepção decorrente da falsa idéia de que as fronteiras nacionais representam linhas de verdadeira autonomia política. Os EUA “importam” prosperidade de todas as partes do mundo, assim como o Japão pode importar “terra” ao ter acesso a cereais australianos e à carne do gado norte-americano. A economia dessa dimensão não está atrelada a nenhum Estado-nação. O que a impulsiona são consumidores e investidores, que não se preocupam com a estabilidade nacional, evitam pagar impostos onde for possível e, cada vez mais, dão como certa a possibilidade de trabalhar para qualquer um em qualquer lugar do mundo.
De forma semelhante, as expectativas de riqueza geradas pelo continente invisível desencadearam uma enorme migração de capital através das fronteiras. O continente invisível não se define apenas pela ausência de fronteiras, mas também por potencializar tal fenômeno.
A dimensão cibernética
Tanto já foi escrito sobre este aspecto do mundo em mutação que parece desnecessário acrescentar qualquer coisa. É suficiente dizer, então, que a informática e as telecomunicações não apenas aprimoraram as comunicações, mas mudaram os ambientes de consumo, de produção e de cidadania de forma profunda e irreversível. Aqueles que não estiverem na dimensão cibernética terão dificuldade em prosperar.
Embora vários dos exemplos atuais de atividades do continente invisível envolvam a Internet, a rede mundial de computadores em si não representa a totalidade da dimensão cibernética. Vários empreendimentos de sucesso do novo continente não precisam estar conectados no sentido convencional. Mas eles prosperam porque reagem às necessidades de seus consumidores com uma flexibilidade trazida pelas novas tecnologias de comunicação.
A dimensão dos múltiplos elevados
Em 1998, o colapso da operadora de fundos hedge Long-Term Capital Management (LTCM) demonstrou não apenas o perigo, mas também a robustez de uma economia baseada numa alavancagem de capital sem precedentes. Para cada dólar nos cofres da LTCM, os investidores –muitos dos quais, grandes bancos– estavam dispostos a desembolsar entre 45 e 250 dólares (dependendo da transação). Para compararmos, vejamos os fundos similares –de alto risco e retorno– que existiam nos EUA durante o auge do mercado de capitais da década de 1920.
Conhecidos como “fundos de intermediários”, estavam disponíveis com múltiplos de 5 –ou seja, emprestava-se cinco vezes o dinheiro que havia em caixa– e foram tidos mais tarde como um dos fatores que precipitaram a crise da bolsa de 1929 e a Grande Depressão. Bem mais tarde, durante a efervescência dos anos 80, o mercado de capitais dos EUA tinha múltiplos médios de 25 (definidos como o preço das ações dividido pelos ganhos).
A Alemanha tinha múltiplos de 8. No ponto mais alto da chamada “bolha japonesa”, o mercado de capitais do país tinha múltiplos de 75. Tais múltiplos foram acusados, na época, de estar fora de controle. Agora, mesmo depois do exemplo da LTCM, fundos hedge internacionais têm múltiplos muito mais altos. Alguns dos heróis da Nasdaq têm múltiplos próximos de 1.000 –ou, já que não registram lucros, têm múltiplos de “infinito”.
A magnitude do dinheiro envolvido no continente invisível e a natureza intrafronteiriça e intrapecuniária desses enormes múltiplos e seus derivativos fazem do continente invisível uma entidade aterradora e escorregadia para governos, empresas e mesmo especuladores.
O aspecto mais significativo dessa dimensão é a alavancagem inédita. Os múltiplos – qualquer que seja a forma que assumam– são uma criação da matemática baseada num conjunto de suposições. Sob a ótica da dimensão visível, as empresas valorizam-se em função de seu VPL. Mas as expectativas sobre o possível território de determinada empresa no continente invisível levariam-na a um valor de mercado de zero a quase infinito –como o valor de terras da Califórnia em 1848.
Devido aos múltiplos elevados do preço de suas ações, uma empresa de e-commerce iniciante e sem lucro como a Amazon.com pôde comprar outras companhias com um simples aporte de capital.
A America Online (AOL) usou seus múltiplos para adquirir o controle de empresas de telefonia. O mesmo fez a desconhecida Qwest. O poder dos múltiplos não é ficção. Mas nem todos esses múltiplos estão relacionados com o ciberespaço.
A AgeCare, empresa de planos de saúde, tem um valor de mercado 500 vezes maior que seus ganhos. Investidores como George Soros e Julian Robertson usam múltiplos elevados para apostar em mudanças em moedas nacionais. Isso dá ao novo continente um sabor de faroeste. Não apenas a capacidade de enriquecer rapidamente, mas a percepção de que os perigos são desconhecidos e se multiplicam, porque é uma civilização desprotegida.
Os modelos matemáticos devem ficar para trás
Por pelo menos um século, os economistas têm usado a matemática para modelar a economia real –a dimensão real do continente invisível. Porém, não há um modelo econômico adequado para a segunda dimensão (a economia sem fronteiras).
Quanto à terceira, enquanto se procura explicar os ganhos de produtividade na nova economia, ninguém sequer tentou desenvolver um modelo matemático da “cibereconomia”, nem de como ela interage com a economia do mundo real das duas primeiras dimensões.
Um desafio ainda maior é o imposto pela quarta dimensão, a dos múltiplos. Ainda que pareça irônico, esses índices puramente “matemáticos” são o principal fator a impedir a modelagem da nova economia. Assim, embora os múltiplos dêem nova forma ao equilíbrio mundial de poder e redefinam a economia real, é difícil usar abordagens macroeconômicas tradicionais para explicar suas altas e quedas. Por isso, acredito que é hora de deixarmos para trás a matemática e a formulação de modelos. Para entender o que está acontecendo na economia mundial, precisamos examinar os efeitos de cada uma das quatro dimensões independentes –e, ao mesmo tempo, interdependentes– e, então, o comportamento geral das interações entre elas.
Em vez de tentar modelar a economia, proponho que se observe seu comportamento. Se chegarmos a um consenso sobre o que estamos presenciando, então teremos uma base suficientemente boa para discutir suas implicações em nossa vida no novo continente.
Atuar nas quatro dimensões
Para a maioria das pessoas, é impossível atuar em mais de uma das quatro dimensões ao mesmo tempo. Afinal, elas representam quatro grupos diferentes de regras para a economia, quatro grupos diferentes de fórmulas para o sucesso e quatro posicionamentos diferentes para vencer. Mas as empresas e os governos que triunfarão no futuro são os que conseguirem atuar nas quatro dimensões.
O continente invisível detém a solução para o entendimento de vários aspectos aparentemente contraditórios da realidade geopolítica. Quase todos nós temos um relacionamento direto, em algum aspecto da vida, com as quatro dimensões. Lidamos com a primeira, visível, quando compramos pão ou recebemos um produto que encomendamos. Ao comprar um carro, todavia, estamos atuando na dimensão sem fronteiras, porque a maioria das peças é, pelo menos em parte, produzida, projetada ou iniciada fora do país.
Toda vez que usamos um cartão de crédito estamos atuando na dimensão cibernética. Se tivermos um fundo de aposentadoria, o dinheiro se multiplicará na dimensão dos múltiplos elevados. Apesar dessa familiaridade com as dimensões do continente invisível, os diretores dos mundos empresarial e governamental ainda baseiam suas decisões na intuição herdada do velho mundo. Estão despreparados para as catástrofes do continente invisível.
Por exemplo: milhões de dólares podem inundar economias locais ou sumir delas em frações de segundo, com o impacto de um furacão sobre a população. A crise financeira asiática do fim dos anos 90 foi uma reação ao novo continente que continha fortes doses de otimismo colonizador e de pessimismo conservador.
As empresas mais bem-sucedidas de hoje estão tomando decisões eficazes porque se ajustam aos padrões das quatro dimensões. A Cisco Systems, por exemplo, opera com as práticas produtivas mais eficientes da dimensão visível: a administração formidável da cadeia de abastecimento e a política de deixar certas atividades de produção nas mãos de sócios confiáveis.
A empresa destaca-se também por tirar partido da dimensão sem fronteiras: os produtos da Cisco têm presença internacional desde o dia em que a empresa foi inaugurada. Na dimensão cibernética, foi a pioneira na integração pela Internet de vendas, marketing, produção e atendimento ao consumidor. Quanto à dimensão dos múltiplos, desde dezembro de 1999 a Cisco registrou vendas de US$ 14 bilhões, lucros de US$ 1,9 bilhão e valorização de mercado de US$ 320 bilhões –ou seja, 171 vezes seus ganhos.
Em cursos convencionais de administração, os temas vinculados às quatro dimensões são ensinados separadamente, isso quando o são. Macro e microeconomia, marketing global, comércio eletrônico, valorização de empresas em função do valor presente líquido e derivativos ocupam partes bem diferentes do currículo.
Na verdade, devem ser analisados em relação com os demais para serem entendidos. Vejamos, por exemplo, o caso de um norte-americano em viagem a Tóquio que compra porcelanas usando um cartão de crédito. Em qual dimensão essa transação acontece? O objeto é tangível e a compra ocorreu numa loja erguida séculos antes de o continente invisível existir. Mas o pagamento é feito com uma moeda que obedece a regras diferentes. A transação com o cartão está enraizada na dimensão cibernética. A influência da dimensão sem fronteiras também é muito forte.
O controle do governo japonês sobre essa transação ainda é relativamente pequeno. A taxa de câmbio entre o dólar e o iene é desconhecida, porque ela muda durante o dia, e só será conhecida quando a fatura for enviada pelo banco emissor do cartão de crédito. Não há dúvida de que a maior parte da jurisdição sobre a transação não está nas mãos de nenhum órgão do governo, mas nas do banco emissor.
Então, como avaliar tal transação? Como cobrar, taxar, registrar e julgá-la como sinal de riqueza e prosperidade? As respostas a essas questões dependem da dimensão pela qual se observa.
Quando os japoneses fazem compras on-line em sites norte-americanos, a situação fica ainda mais complexa. As transações empresariais estão cada vez mais sendo conduzidas eletronicamente. Como fixar o imposto do valor agregado numa transação realizada mundialmente? Alguns países restringem o uso de múltiplos no mercado interno, enquanto outros apóiam relações preço–lucro baixas. No entanto, vários desses países permitem a seus cidadãos adquirir produtos financeiros de lugares como as Ilhas Cayman. Nos próximos cinco ou dez anos, deverá haver mais consciência do público em relação a essas questões e mais empenho para chegar a respostas mundiais em matéria normativa.
Por volta de 2010, o ethos e a ética do continente invisível terão penetrado nos negócios e na política de todo o mundo. A era do descobrimento está por terminar; o que começa agora é a colonização do continente invisível. Exploradores estão cercando território, criando novos tipos de comunidades, estabelecendo postos avançados de fronteira e começando a fazer negócios com o mundo que deixaram para trás. Eles já não precisam olhar em frente, mas observar o presente.
Abordagem estratégica
Descrever o novo ambiente como um “novo continente” é uma metáfora muito útil para o planejamento de estratégias. Quem tem sucesso nos negócios ou na política parece ter desenvolvido um modelo mental do continente invisível e do velho mundo como dois ambientes coexistentes mas com parâmetros diferentes. Regras e leis aplicáveis a um são irrelevantes para o outro. Estratégias que funcionam em um levam ao fracasso em outro.
Muitas organizações e seus líderes atuam nos dois continentes, às vezes sem saber em qual deles estão. Ao construir pontes para gerar empregos, o governo japonês cria ainda mais raízes no velho mundo, confiando numa teoria keynesiana de criação de demanda que já tem um século de idade. No melhor dos casos, o governo mantém o nível das demandas da dimensão visível do novo continente, mas os cidadãos japoneses que compram água mineral e serviços de Internet por telefonia celular estão vivendo segundo as regras das duas outras dimensões. É onde também estão os investidores que espalham seu dinheiro por todo o planeta.
O mesmo ocorre com o crescente número de japoneses que trabalham em companhias de todo o mundo, pouco preocupados com o governo da nação onde nasceram. Como não há sinalização clara que indique as fronteiras do novo continente, só podemos perceber a mudança de ambiente ao construir uma capacidade própria de reconhecimento.
Quatro características do novo território são particularmente significativas:
1. Por ter natureza cibernética, permite que a informação passe sem dificuldade através de todos os tipos de fronteiras, tanto nacionais como empresariais. Assim, a menos que controlem as notícias, os governos não podem mais enganar a população de seu país. Mesmo em países democráticos, o fluxo livre de informações tem um tremendo impacto político.
Os protestos anti-OMC de Seattle, em novembro de 1999, cresceram em volume e agressividade cada dia porque os manifestantes estavam se comunicando com o resto do mundo pela Internet. O livre fluxo de informações torna o continente invisível capaz de trocar com facilidade produtos, conhecimento, serviços e capital através de todos os tipos de fronteiras. Isso faz com que países e empresas tenham mais dificuldade para controlar seus mercados.
No continente invisível, os consumidores controlam a cadeia de fornecimento e demanda, e os produtores mundiais seguem a direção de seus consumidores. Com a Internet funcionando como um catálogo colorido e atualizado que chega a todos os cantos do mundo –não apenas de bens, mas de música, filmes, jornais, idéias, oportunidades, transações potenciais, crítica e posicionamentos–, todos que têm acesso ao sistema possuem um grau apurado de alcance comercial, cultural e mesmo “civilizatório”, um nível de liberdade que nenhuma nação pode inibir.
A economia é limitada apenas pelos gostos e necessidades dos consumidores. Produtos que vendem bem em certas regiões da Itália, Rússia, Brasil, Coréia do Sul ou Canadá podem não vender bem em outras. As empresas devem aprender o que fazer com nuances de demandas que emergem de diferenças em regiões, gerações e outras características demográficas.
2. Como não tem terras, é fácil entrar no novo continente, mas apenas para os que estiverem dispostos a abandonar suas formas antigas de pensar. Em vez de oceanos, a travessia para o novo continente leva um instante. Isso o deixa vulnerável a abordagens enraizadas em formas antigas de pensamento e comportamento, fadadas ao fracasso, da mesma forma que um navegador que içasse velas sem noção clara dos ventos.
O novo continente deve ser abordado do mesmo modo com que nos aproximamos de um oásis no deserto: com firmeza, mas cautelosamente. O risco de ataque é mínimo. O grande perigo é investir tempo e dinheiro para logo descobrir que os dividendos são só miragem. A intuição não serve para administrar as tecnologias do novo continente.
Há apenas quatro anos, alguns estudiosos estavam convencidos de que a Internet entraria em colapso. Três anos atrás, muitos argumentaram que a rede seria boa para a busca de informações, mas vulnerável demais para transações confiáveis. Foi no Natal de 1998 que todo mundo começou a correr atrás da nova febre do ouro das compras on-line. Mesmo assim, o e-commerce ainda representará uma porção pequena da economia norte-americana, para não falar da mundial. De modo que tanto os que consideram a Internet um meio inseguro e pouco confiável como os que acreditam que ela permitirá todo tipo de transações levarão ainda várias décadas para provar seus pontos de vista. A questão central tanto para diretores de empresa como para políticos é de que lado ficar.
3. Embora o novo continente tenha sido descoberto pelos norte-americanos, nenhuma nação detém o monopólio de atuar nele. Pode ingressar nele qualquer país, empresa ou indivíduo de qualquer raça ou grupo étnico. Nesse sentido, ele é bem mais justo do que o velho mundo. O ingresso no novo continente só depende da adoção de novos tipos de comportamento. Ironicamente, isso significa que o novo continente é menos diversificado do que qualquer um dos antigos continentes.
As pessoas que entram nele, não importa de qual origem étnica ou sexo, aprendem a agir de forma específica e a ter crenças específicas. Portanto, um dos desafios para o novo continente é descobrir uma forma de sua população crescer de modo mais diversificado ao longo do tempo. Ou encarar as consequências da não-diversificação, entre elas isolamento e mercados restritos. Como o ingresso no novo continente requer o abandono de formas antigas de pensar, ele tende a recompensar apenas as pessoas que reconhecem as vantagens competitivas de estar ali.
A riqueza concentra-se em pessoas com diferentes habilidades e acesso a redes diversas. Os melhores empregos são reservados a quem pode treinar a si mesmo continuamente e a quem está conectado a redes em que tem credibilidade e respeito. Os participantes mais bem-sucedidos do novo continente serão os que puderem definir um caráter que os distinga. Isso explica o alto preço das ações da Amazon.com, sem jamais ter dado lucro algum.
Intuitivamente, os investidores reconhecem que a empresa já conquistou seu território. Além disso, como o continente invisível ainda está desenvolvendo sua governabilidade e infra-estrutura, as porções de território já cercadas dificilmente serão invadidas. Os poucos empreendimentos sustentáveis serão os que migrarem para as salas de estar dos consumidores e se instalarem na mente deles por meio do computador ou da televisão.
4. Finalmente, como convém a qualquer fronteira, o novo continente encarna o valor do individualismo. De pouco servem as comunidades e as famílias ou as inter-relações ao estilo do velho sistema. Tampouco há uma elite ditando o que tem e o que não tem valia. Nesse continente, há milhares de elites, apenas vagamente cientes do valor das outras. Em muitos aspectos, esse individualismo faz com que o novo continente seja um lugar desconcertante. Suas forças econômicas são tão compulsivas que parecem incontroláveis se comparadas à economia “real” industrial. Assim, como o velho mundo fomentou o sistema comunista e com o tempo descobriu seus excessos e mazelas, o novo continente exacerba os excessos e mazelas do capitalismo selvagem.
As finanças do continente invisível, por exemplo, aceitam a arbitragem e a especulação em escala mundial, mesmo que sejam práticas danosas para os inocentes habitantes do antigo continente. Costuma-se dizer que, em qualquer dia, mais de US$ 1,3 trilhão podem mudar de mãos no mercado de moedas em todo o mundo, embora haja apenas US$ 1,2 bilhão nas reservas de todos os bancos centrais do mundo. Esse grau de transação ocorre independentemente da produção e do consumo. Ele funciona num plano fictício, em que se ganham e perdem fortunas e se determina o sucesso ou o fracasso das políticas nacionais. O desafio de nosso tempo é descobrir uma forma de integrar o velho continente ao novo, sem abrir mão dos benefícios de nenhum dos dois.
1985: quando tudo começou
O ano em que o novo continente emergiu foi provavelmente 1985. Foi o ano em que se lançou o Windows 1.0 (Microsoft), em Seattle; em que a rede de TV CNN (Cable News Network) começou a transmitir de Atlanta para o mundo; e em que o computador Gateway 2000 chegou ao mercado. Foi também o ano da inauguração da Cisco Systems, líder na produção de roteadores de rede.
A Dell Computer tinha apenas um ano de idade e a Sun Microsystems, três; o Quantum Fund, de George Soros, sediado nas Ilhas Cayman, existia havia quatro anos e o banco de dados da Oracle, oito. Em resumo, a maioria daqueles que deram forma à nova economia começou seu empreendimento em algum momento em 1985.
As empresas criadas naquela época não tinham precedentes tanto na velocidade de sua ascensão como na maneira não-convencional de buscar seus objetivos. A maioria não decolou de cidades grandes ou de localidades cosmopolitas. Em sua infância, em meados dos anos 80, essas empresas pareciam estar atuando de acordo com uma sensibilidade completamente nova, quase como se tivessem um conjunto de cromossomos diferente do comum às outras empresas norte-americanas. Elas descreveram-se –ou foram descritas– com palavras que não constavam no dicionário convencional dos negócios: “garagem”, “alavancagem”, “múltiplos”, “cibernético”, “arbitragem”, “redes”, “plataformas”, “portais” e “velocidade”. Também não pareciam estar preocupadas com a então fase ruim da economia norteamericana.
A CNN, por exemplo, apostou na suposição de que poderia criar um canal internacional de notícias sem se preocupar com as limitações de alcance de transmissão. Naqueles dias, os norte-americanos costumavam licenciar TVs a cabo cidade por cidade. Os poucos canais a cabo de amplo alcance de então concentravam-se em entretenimento.
De uma hora para a outra, a CNN estava servindo mais de 200 “territórios” tradicionais de TV em todo o mundo com apenas um sinal. Agora é fácil dizer que uma atitude atrevida ou não-convencional era a única forma de prosperar. Mas foi preciso coragem.
Os negócios tradicionais dos EUA padeciam; o país emergia de uma grave recessão. O déficit do governo federal chegou a registrar a cifra recorde de US$ 212 bilhões. O dólar estava ficando cada vez mais fraco. No entanto, a demanda norte-americana de produtos estrangeiros era tão forte que o desequilíbrio da balança comercial do país subiu para US$ 150 bilhões. Algumas empresas anunciaram que fechariam as portas porque não podiam arcar com os custos de seguros contra processos movidos por consumidores. Os empresários sentiam-se restringidos pela legislação e pelo poder dos sindicatos; eram encarados como incapazes de inovar.
Os EUA estavam saindo da profunda recessão do começo da gestão de Reagan, mas a percepção de tal emergência ainda não havia chegado ao público. A qualidade dos produtos norte-americanos era rotineiramente menosprezada, tanto que o best seller Vencendo a Crise, de Tom Peters e Bob Waterman, era tido como o livro que descrevia as poucas companhias excelentes que sobraram. Mesmo algumas delas, como a Atari, estavam quase falindo.
Nesse cenário, muitos previam que o país predominante no século XXI seria o Japão. Mas, em 1985, quem olhasse mais de perto percebia que algo novo tomava forma. Em vez do predomínio de um único país, a economia mundial se globalizava. O palco estava armado para alianças estratégicas que permitiriam a empresas servir os três maiores mercados: os EUA (com o Canadá), a Europa e o Japão (com vários “Tigres Asiáticos”). Em vez de empregar o efeito cascata de um mercado para outro, conquistando mercados importantes um após o outro, as companhias de sucesso agora tinham de adotar um modelo “chafariz”: inundar os mercados-chave das três regiões simultânea e espontaneamente.
Também há sinais de que 1985 foi um ponto de ruptura política. Naquele ano firmou-se em Nova York o Acordo Plaza, um consenso entre os ministros da Fazenda do Grupo dos Cinco (EUA, Japão, Grã-Bretanha, França e Alemanha) para permitir que o dólar se desvalorizasse –trazendo assim um período de pesados investimentos de investidores de outros países, particularmente do Japão, em empresas e no mercado imobiliário dos EUA.
Em 1985, Mikhail Gorbatchev se tornou o poderoso secretário-geral do Partido Comunista da então União Soviética (e assumiria a presidência em 1988). No Congresso dos EUA, os senadores Phil Gramm e Warren Rudman lutaram pela aprovação de uma medida que impôs limites ao orçamento de gastos do governo, assegurando que os EUA seguiriam uma trilha de relativa austeridade governamental pelo resto da década de 1980 e em todos os anos 90.
Talvez mais importante de tudo, por volta de 1985 Ronald Reagan e Margaret Thatcher finalmente conseguiram derrubar as barreiras e normas que impunham restrições aos três setores críticos do continente invisível: transportes, telecomunicações e finanças. Como na Revolução Industrial, algumas pessoas e organizações adaptaram-se naturalmente e mudaram sua forma de pensar. Não eram necessariamente adeptas da tecnologia em si, mas representavam um número crescente de habitantes naturais do novo continente, pessoas predispostas a seu modo de vida.
A Gateway, a Dell e a Cisco, por exemplo, assumiram um posicionamento completamente original em relação à administração da cadeia de suprimento. Líderes antiquados pensavam “naturalmente” em suas organizações como uma série de estágios: pesquisa e desenvolvimento, projeto, produção, vendas, marketing e serviço. Mas, para os líderes da Gateway, da Dell e da Cisco e para outras empresas novas, o consumidor era o principal motivador de pesquisa; e a pesquisa e as necessidades dos clientes estavam intimamente relacionadas. Suas organizações pareciam uma rede de funções e empresas afiliadas, mais do que uma estrutura piramidal tradicional com lugar fixo para a diretoria e ligações verticais com vendedores e subcontratados. Hoje é bastante claro quanto o mundo mudou em resultado desses empreendimentos. O sistema Windows, por exemplo, tornou-se uma plataforma na qual informação, dinheiro e mesmo emoções e poder são compartilhados. O mundo “depois de Gates” (d.G.) é completamente diferente do mundo que existiu “antes de Gates” (a.G.). Os historiadores chamarão 1985 o ano do presságio, o anno domini da sociedade em rede.
Sobre o autor Kenichi Ohmae
Kenichi Ohmae pode falar de cátedra quando o assunto é o mundo novo. Ele esteve entre os protagonistas de grandes inovações do final do século XX, como o desenvolvimento de vários produtos eletrônicos japoneses –o laptop, por exemplo. Autoridade inquestionável em estratégia corporativa –chegou a ser chamado de Mr. Strategy–, Ohmae é consultor de grandes empresas multinacionais e autor de livros fundamentais em sua área, como O Fim do Estado-Nação (ed. Campus), O Poder da Tríade, O Estrategista em Ação e Além das Fronteiras Nacionais (os três, ed. Pioneira). O recém-lançado O Continente Invisível também pode, por sua repercussão, entrar para a lista dos clássicos. HSM Management já publicou um artigo de Ohmae na edição número 8 e uma entrevista exclusiva com ele na edição número 11.
Fonte: Revista HSM Management com direitos de © Kenichi Ohmae