Cada vez mais inovações do setor têm sido desenvolvidas em iniciativas que unem empresas de saúde brasileiras, universidades, instituições internacionais e organizações não governamentais, como mostra essa reportagem. Também as parcerias público-privadas rendem frutos lucrativos.
Que tal um medicamento contra náusea que a pessoa não precisa engolir? (Afinal, uma pílula não cai bem quando se está enjoado.) Para vencer o desafio de criar uma pastilha que dissolvesse na boca assim, a indústria farmacêutica brasileira Biolab não hesitou: buscou uma parceria com a Universidade de São Paulo (USP ).
O resultado foi o lançamento de um dos mais bem-sucedidos antieméticos (medicamentos que aliviam os sintomas da náusea) do mercado. Esse tipo de parceria entre indústria e mundo acadêmico se tornou rotina na Biolab, um dos maiores laboratórios farmacêuticos do País, com sede em São Paulo.
A empresa desenvolve alguns de seus produtos mais inovadores em projetos não apenas com a USP, como também com as universidades federais de Minas Gerais (UFMG) e do Rio Grande do Sul (UFRGS ). “Temos a inovação em nosso DNA”, afirma Dante Alario Jr., CSO (executivo-chefe da área científica, na sigla em inglês) da empresa.
O laboratório investe 11% do faturamento em pesquisa e inovação, o que significou R$ 55 milhões em 2011 e deve ficar em R$ 43 milhões este ano —mas a redução se deve só a entraves regulatórios. Sua área de pesquisa, desenvolvimento e inovação emprega 110 pessoas, mais de 90% cientistas, e conduz hoje 149 projetos, além de ter cinco novas moléculas em desenvolvimento.
O Laboratório Teuto Brasileiro, que tem seu complexo industrial localizado em Anápolis (GO), também trabalha com parcerias externas para desenvolver produtos voltados para o mercado local.
A empresa investe 7% do faturamento em pesquisa e desenvolvimento de novas drogas e da linha de genéricos e mantém parcerias com as universidades federais de Goiás (UFG ), do Rio Grande do Sul (UFRGS ) e da Paraíba (UFPB), a University of California em Irvine (Estados Unidos), a faculdade de medicina da Pontifícia Universidad Católica del Ecuador e os institutos Trident Life Science (Índia) e Anapharma (Canadá).
Os medicamentos genéricos respondem por 40% do faturamento do laboratório. Segundo Marcelo Leite Henriques, presidente- executivo do Teuto, a linha de genéricos também exige pesquisa, porém trabalha com moléculas já existentes. “Na pesquisa e desenvolvimento de um produto que visa uma patente, ou seja, inovador, você tem de fazer os testes clínicos nas diversas fases para posterior aprovação”, explica.
Indústria e universidade estão cada vez mais próximas, mas, para o CSO da Biolab, o cenário deveria ser ainda melhor. “A universidade não conhece o mercado e muitas vezes duvida daquilo que a empresa apresenta.” Alario Jr. acredita que há uma “fantasia” sobre os royalties, com demandas de 6% a 10% sobre o preço do produto, o que inviabiliza muitos projetos.
Outro problema, afirma, é a distância entre a diretriz da política industrial e de inovação do governo federal e sua execução pelas agências e órgãos governamentais. “Temos um projeto com a Fiocruz que não vai adiante porque o contrato está há dois anos rodando na instituição. Outro enfrentamento burocrático acontece quando levamos um produto inovador para ser aprovado na Anvisa [Agência Nacional de Vigilância Sanitária] e eles não têm regras estabelecidas para aquele tipo de produto. Sem regras, não há aprovação.”
A alma do negócio
Apesar dos ajustes ainda necessários, as parcerias entre instituições públicas e privadas na área de saúde são cada vez mais numerosas. Uma delas diz respeito a um item com o qual poucos se preocupam durante um tratamento de saúde: o software dos equipamentos. “O software é extremamente importante. Se o software utilizado em um desfibrilador calcular de modo errado a quantidade de energia que deve ser aplicada ao coração do paciente, ele pode não proporcionar o efeito terapêutico desejado”, exemplifica Misael Morais, professor e chefe adjunto do Departamento de Computação da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB).
Para avaliar esse tipo de software, a UEPB estabeleceu uma parceria que fez desembarcar este ano no País o Instituto Fraunhofer, da Alemanha, a mais importante instituição de pesquisa aplicada, inovação tecnológica e apoio à indústria na Europa.
O resultado da iniciativa, que conta com o apoio do governo federal e da Fundação Parque Tecnológico da Paraíba, é a implantação de um laboratório de certificação de software de equipamentos médicos em Campina Grande (PB), cuja inauguração estava prevista para o fim de 2012, com investimentos de R$ 15,2 milhões. Morais é uma das pessoas à frente dessa iniciativa, que faz parte do Núcleo de Tecnologias Estratégicas em Saúde (Nutes), um centro de especialização em engenharia biomédica.
O Nutes baseia-se na parceria do mundo acadêmico com instituições governamentais e internacionais e empresas privadas para apoiar o desenvolvimento da área de saúde e seu complexo industrial. “No tocante a custos, detectar e corrigir um erro de software durante a fase de desenvolvimento e projeto é cem vezes mais barato do que corrigir o problema após a comercialização do produto”, destaca Morais.
Para ele, a parceria com o Fraunhofer Institute for Experimental Software Engineering —um dos braços do Instituto Fraunhofer— possibilita ao Brasil absorver de maneira rápida e objetiva os conhecimentos necessários aos processos de desenvolvimento e avaliação de softwares.
Morais acredita que o laboratório contribuirá para melhorar a qualidade das tecnologias de saúde produzidas no País. O Nutes pretende que um terço de seu custo operacional venha de parcerias com a iniciativa privada, e a UEPB já negocia com duas empresas de equipamentos médicos a realização de projetos conjuntos.
Necessidades locais
A Intercientífica é outra empresa brasileira que acredita na parceria com instituições públicas e privadas para desenvolver produtos médicos inovadores. Vencedora dos prêmios Finep 2010 de Inovação Tecnológica e Abimo Inova Saúde 2011, a empresa está instalada no Parque Tecnológico da Universidade do Vale do Paraíba (Univap), em São José dos Campos (SP).
Entre 2009 e 2011, a Intercientífica investiu R$ 5 milhões em pesquisa e desenvolvimento, com apoio da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), empresa pública ligada ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação. Seus principais produtos são kits e equipamentos de análises clínicas utilizados na triagem e diagnóstico nas fases pré-natal (teste da mamãe) e neonatal (teste do pezinho).
A vantagem dos produtos desenvolvidos pela Intercientífica, segundo seu diretor científico, Claudio Sampaio Filho, é serem focados nas necessidades específicas do mercado nacional e, diferentemente dos produtos das multinacionais, voltarem-se para as populações às quais se destinam.
Além do apoio da Finep, ele destaca que os alunos, professores e pesquisadores da Univap participam dos projetos em um ambiente que promove a formação de novos profissionais. “Criamos um laboratório de pesquisa e desenvolvimento com o objetivo de desenvolver novos produtos e aprimorar os existentes, de acordo com as necessidades do mercado e as particularidades de cada cliente.”
Parceria em prol da inovação no ensino de medicina
Em 2011, a primeira turma de medicina da Faculdade Pernambucana de Saúde (FPS) concluiu a graduação pronta para enfrentar os desafios do mercado. Mais do que dar início à carreira de 114 novos médicos, a despedida do campus consolidou a FPS como formadora de profissionais e cidadãos —e ela já e considerada a quinta melhor instituição privada de ensino médico do País.
Fundada em 2005 a partir de uma parceria entre o Grupo Educacional Boa Viagem e o Instituto de Medicina Integral Doutor Fernando Figueira (Imip), a escola também oferece os cursos de farmácia, psicologia, enfermagem, fisioterapia e terapia ocupacional, e aguarda a autorização do Ministério da Educação para dar início aos de odontologia e nutrição.
Vem se destacando não só pela infraestrutura e qualidade do corpo docente, mas pelo método de ensino diferenciado. Seus recentes resultados têm relação direta com a escolha da metodologia Aprendizagem Baseada em Problemas (ABP) —do inglês Problem-Based Learning (PBL)—, transferida para a sala de aula. “É um método construtivista, de base complexa, que consegue atingir a plenitude das pessoas.
O racionalismo levou a medicina a decompor o homem para, estudando melhor a parte, compreender o todo. E foi decompondo de tal modo que já chegou às células mitocondriais. Mas, quando chega à mitocôndria, esquece o homem completo. Nós formamos alunos que cuidam do homem como um todo. Não se pode tratar a doença sem tratar o doente”, afirma o superintendente do Imip e coordenador acadêmico da FPS, Gilliat Falbo.
Sem aulas convencionais, o ABP prioriza o “aprender a aprender”. Das chamadas sessões tutoriais participam um grupo de 12 alunos e o professor-tutor. Ele apresenta um problema, identificado e discutido pelo grupo, que deve indicar hipóteses e soluções. “É um modelo de aprendizagem ativa, que trabalha a construção de conhecimentos a partir de desafios a serem enfrentados no dia a dia da prática médica.
O aluno aprende a fazer os procedimentos e a ver o paciente por inteiro”, explica Falbo. De acordo com a presidente da Associação Brasileira de Educação Médica (Abem), Jadete Lampert, a adoção do método ABP ganhou corpo no Brasil com a reformulação dos currículos acadêmicos, que gerou a necessidade do uso de metodologias ativas, diferentes das tradicionais. “As escolas começaram a adotar o ABP, umas com mais dificuldades, outras com menos. O grande benefício do método é que os alunos constroem seu aprendizado.”
No entanto, Lampert tem ponderações sobre o assunto. “A metodologia exige preparo do professor e a maioria não está pronta para o novo papel que exerce em sala de aula, que não é apenas transmitir conhecimento. O professor é um facilitador, precisa acompanhar os alunos, é avaliado. A capacitação do corpo docente ainda é frágil e pontual, quando deveria ser contínua.”
O método ABP foi escolhido desde que o Imip decidiu criar uma faculdade, no início dos anos 1990. O Imip é uma entidade filantrópica fundada em 1960, que atua no atendimento à população carente de Pernambuco e tem um complexo hospitalar que hoje é centro de referência de assistência em diversas especialidades. Na época, seus diretores identificaram a falta de profissionais que atendessem à filosofia da instituição. “Percebíamos que as universidades federal e estadual de Pernambuco colocavam no mercado médicos bem preparados tecnicamente, mas que deixavam muito a desejar do ponto de vista humanista, ético, cultural”, lembra Falbo.
Foi então que surgiu a ideia de fundar a própria escola médica. Hoje, a FPS conta com 1,8 mil alunos nos cursos de medicina, psicologia, enfermagem, fisioterapia, farmácia e terapia ocupacional. Ao contrário de muitas instituições de ensino, o Imip decidiu formar primeiro o corpo docente para depois inaugurar a faculdade. O passo inicial foi a instalação do primeiro mestrado em saúde materno-infantil da América Latina e o envio de médicos e professores para cursos e intercâmbios em universidades dos Estados Unidos e da Europa. “Levamos dez anos para formar mestres e doutores.
Criamos massa crítica para preparar a escola. Em seguida, elaboramos nosso planejamento estratégico”, conta Falbo. Cirurgião pediátrico, ele trabalha no Instituto Materno-Infantil de Pernambuco, hospital ligado à Fundação Alice Figueira, uma das mantenedoras da FPS, desde 1982. Um dos diferenciais da FPS como escola privada é justamente a existência de um hospital-escola para o treinamento dos alunos. Falbo participa do grupo que idealizou a faculdade desde o início e assumiu a superintendência do Imip em 2011, quando o então ocupante do cargo, Antônio Figueira, tomou posse como secretário de Saúde de Pernambuco.
Segundo Falbo, o planejamento estratégico estabelecia como meta que a FPS seria a melhor escola do Norte e Nordeste e a sétima melhor do País em 2015. Os resultados positivos no fechamento de um ciclo de 20 anos, em 2011, demonstram que a faculdade está no caminho certo. “Em 2010, o Índice Geral dos Cursos do Ministério da Educação avaliou 2.176 instituições de ensino superior brasileiras de todas as áreas. Só 158 tiveram notas 4 e 5 (a nota máxima) e a FPS foi uma delas.
Entre as 158, estamos na 85ª posição. Se separarmos dessas 158 as públicas e privadas, das privadas somos a 32ª. Se tirarmos das privadas as que têm curso de medicina, somos a 5ª do País”, comemora Falbo. Especificamente o curso de medicina da FPS, avaliado recentemente, obteve nota 4. Para efeito de comparação, os cursos das universidades federal e estadual de Pernambuco (UFPE e UPE, respectivamente) ficaram com nota 3. (Andrea Pinheiro)
Solar Ear, uma ruptura
Mais um caso de parceria em prol da inovação, a Solar Ear surgiu graças à associação do executivo canadense Howard Weinstein com o Cefac, instituição não governamental brasileira voltada para o ensino e pesquisa nas áreas de fonoaudiologia e educação. Depois de comandar grandes empresas na América do Norte por 25 anos, Weinstein chegou ao Brasil em 2009, a convite de duas fonoaudiólogas que conheceram seu trabalho na África, e fundou a Solar Ear, que hoje tem 18 funcionários —15 deles com deficiência auditiva, que trabalham meio período.
Colocou-a ao lado de gigantes, como Embraer e Ambev, na lista das dez mais inovadoras empresas do País segundo a revista Fast Company. A Solar Ear fabrica aparelhos auditivos e carregadores para suas baterias que custam pelo menos um terço dos produtos concorrentes —seu preço fica em torno de R$ 300, enquanto o do mercado varia entre R$ 1 mil e R$ 10 mil. Além disso, funcionam com energia solar, evitando um gasto semanal com pilhas, o que torna esse tipo de equipamento proibitivo para milhões de pessoas.
Sem falar na contribuição para o meio ambiente ao evitar o descarte das baterias. Apesar do reconhecimento internacional, da venda de mais de 400 mil unidades de aparelhos, carregadores solares e baterias para diversos países, só agora a Solar Ear deve começar a vender seus produtos no Brasil. Depois de mais de dois anos aguardando a aprovação pela Anvisa, a autorização só saiu em setembro.
A inovação da Solar Ear começou a nascer quando Weinstein foi comandar, como voluntário, uma iniciativa patrocinada por uma fundação canadense com crianças surdas em Botsuana. “Foram aquelas pobres crianças africanas, que não tinham eletricidade nem água em suas casas, que tiveram a ideia de fazer o aparelho à base de energia solar”, conta ele. A partir daí, Weinstein foi atrás de engenheiros e designers e transformou a ideia em realidade.
O carregador solar é universal e serve para as baterias e para o próprio aparelho. “Em Botsuana, os pais roubam as baterias para vendê-las, então incluímos a opção de carregar o aparelho diretamente para evitar isso.” Weinstein não patenteou a invenção. “A ideia é que grandes fabricantes adotem a tecnologia e tornem o produto disponível para o maior número de pessoas possível. Além disso, gastaríamos muito com advogados no processo de patente, o que elevaria o custo”, justifica.
No Brasil, foi desenvolvida uma versão digital do aparelho e uma nova geração de carregadores. Essa é outra lição aprendida por Weinstein: a cada nova fábrica, seus produtos são aprimorados a partir da sabedoria e parcerias locais. Ele acredita que um dia sua tecnologia será adotada pelos grandes fabricantes de aparelhos auditivos. “O maior sinal de meu sucesso será minha falência.” (S.A.)
Fontes: Revista HSM Management, por Sílvio Anaz