O pensamento de design

Diante de seus novos alunos de Stanford, numa tarde quente de Palo Alto, David Kelley, fundador da empresa de consultoria em design Ideo, com perto de 60 anos de idade, apresenta o que chama de “pensamento de design”, a metodologia que ele tornou famosa e que é o conceito motivador por trás da escola que fundou.

“Vocês estão aqui hoje porque nós deixamos de nos ver como designers e passamos a nos ver como pensadores do design”, diz ele. “Nós, como pensadores do design, temos essa confiança criativa em uma metodologia que, diante de um problema difícil, nos permite surgir com uma solução que ninguém teve antes.”

É um conceito radical: a ideia de que a criatividade pode ser convocada de acordo com a vontade, num processo não muito diferente do método científico. Isso contradiz o que a maioria das pessoas –incluindo os 50 estudantes sentados diante de Kelley– sempre pensou: “Que, para ser criativo, um anjo lhe aparece”, diz Kelley, rindo.

A Ideo, que conta com mais de 500 funcionários em oito escritórios localizados em três continentes, aproveitou a metodologia de Kelley para fazer de tudo. Nos últimos 30 anos, a empresa enfrentou o desafio de desenvolver uma vacina sem agulha para a Intercell, revitalizar a experiência de andar de bicicleta para a Shimano e repensar os checkpoints de segurança de aeroportos para a TSA [Transportation Security Administration, agência criada pelo governo norte-americano após o atentado de 11 de setembro de 2001 para garantir a segurança dos sistemas de transporte do país].

Soma mais de mil patentes desde 1978 e ganhou 346 prêmios de design desde 1991, mais do que qualquer outra empresa do mundo. O processo de pensamento de design serve de apoio a um faturamento de cerca de US$ 100 milhões por ano, fruto de um portfólio de clientes que inclui Anheuser-Busch, Gap, HBO, Kodak, Marriott, Pepsi e PNC, entre centenas de outros.

Em resumo, a Ideo tornou-se a alternativa para companhias que buscam curar sua anemia em inovação. Kelley sempre foi o homem no epicentro desse universo em expansão. Então, numa manhã, ele notou um caroço no pescoço. “Você tem câncer”, disse o médico de Kelley pelo telefone. “Assim mesmo”, lembra ele. “Eu fiquei um lixo.” Era um carcinoma em estágio 4, que passou sem diagnóstico por um ano e meio.

Os resultados dos exames preliminares eram preocupantes, mas Kelley, um otimista, acreditava que ele poderia vencer a doença com energia e o melhor da medicina. Então, seu oncologista o sentou na cadeira e apresentou as estatísticas: ele tinha 40% de possibilidade de estar vivo em quatro anos. O que se seguiu foi infernal. Quimioterapia, cirurgia, radioterapia. A garganta ficou de um jeito que ele mal conseguia engolir. As náuseas eram tão fortes que não conseguia se concentrar o suficiente para ler ou mesmo ver TV. “Levei nove meses num quarto tentando não vomitar”, diz Kelley. Ele perdeu mais de 18 quilos. Sua mulher, K.C. Branscomb, ex- -CEO da IntelliCorp, a quem conheceu por meio de seu amigo Steve Jobs, foi de uma dedicação ímpar a cuidá-lo. Seu irmão, Tom, “negociou” sua relação com o mundo, alertando os amigos de que não estava disposto a conversar com ninguém. E sua filha de 11 anos o manteve lutando nos momentos mais difíceis.

“No começo, você pensa: ‘Não quero deixar de vê-la crescer’. Isso é motivador, mas não tanto assim”, diz ele. “Somente quando consegui sair de mim mesmo e pensar nela é que achei a determinação para seguir em frente.” Na fase de recuperação, Kelley passou a se consultar com um psiquiatra. “Quando eles dizem que você não tem muitos anos a mais de vida, você se pergunta: ‘O que eu gostaria de fazer?’ .”

Ele e o terapeuta começaram a analisar detalhadamente seus dias, escolhendo que atividades eram mais satisfatórias. “Uma das que realmente é divertida para mim é a Ideo”, afirma ele. Trabalhar na empresa que ele construiu se encaixa na missão de vida de Kelley. “Eu realmente acredito que vim a este planeta para ajudar as pessoas a ter confiança em sua criatividade”, acrescenta. “Eu não tenho 27 agendas. Não sou o senhor sustentabilidade, o homem do mundo em desenvolvimento. Minha contribuição é ensinar o maior número de pessoas que eu puder a usar os lados do cérebro, de maneira que, para cada problema, para cada decisão na vida delas, levem em consideração soluções criativas, assim como soluções analíticas. E a doença me deu mais determinação para fazer isso.” Ideo Vai a Stanford Depois de se formar na Carnegie visual de produtos de tecnologia, para formar a Ideo.

Um aglomerado de prédios em uma rua perto do bairro comercial de Palo Alto, a sede da Ideo parece uma mistura de escola da linha Montessori com apartamento hippie da década de 1970. Por todo lugar, há canetas Pilot e quadros brancos; bloquinhos de Post-it estão espalhados pelas salas de reunião. Uma máquina de goma de mascar, um xilofone e um baleiro estão sempre por perto. Um Volkswagen antigo foi transformado em local de reunião, com direito a cadeiras de praia no capô. O aspecto divertido do lugar é profundamente intencional, resultado da convicção de Kelley de que as crianças são naturalmente criativas, pelo menos até o sistema educacional tirar isso delas. Para testar sua teoria, Kelley possui vários programas educacionais em andamento em escolas locais para tentar ensinar às crianças a usar tanto seu lado direito do cérebro como o lado esquerdo. Ele gosta de citar o educador britânico Sir Ken Robinson: “Criatividade é tão importante na educação quanto o ensino formal”. Embora adore lecionar [veja seu mapa mental para a educação, na página 84], Kelley sabe que suas ideias podem atrair seguidores mais fortes –e ser disseminadas mais rapidamente– por meio das empresas. “Se o objetivo é mudar o mundo, isso pode ser mais rápido com a participação do universo corporativo.”

O que é notável no caso da Ideo é que ela está constantemente trabalhando em novos protótipos de seu próprio modelo de negócio, tanto como faria no caso de seus clientes. Do início de suas atividades, com produtos tecnológicos para o Vale do Silício, a empresa rumou para o design de experiências e agora lida com os obstáculos que impedem que soluções de design sejam absorvidas por uma organização.

Mas, mesmo com essa expertise envolvida, Kelley tem de lutar para explicar essa evolução. A Ideo estava empurrando seus clientes para frente, usando algo chamado design, mas o que a companhia estava realmente fazendo era algo mais transformacional. “Da mesma forma que um peixe não sabe que está molhado”, diz ele, “nós não percebíamos que nossa real contribuição era que as empresas para as quais trabalhávamos não pensavam como nós. E, quando elas passavam a raciocinar como nós, isso trazia muitas vantagens para elas.”

Em uma reunião com o presidente- -executivo da Ideo, Tim Brown, Kelley teve um estalo: eles parariam de chamar a abordagem da Ideo de “design” e passariam a chamá-la de “pensamento de design”. “Eu não sou uma pessoa das palavras, mas em minha vida esse foi o momento mais importante que as palavras, ou os rótulos, me proporcionaram. Porque, a partir dali, tudo passou a fazer sentido. Agora sou especialista em metodologia, mais do que o cara que desenha uma nova cadeira ou um novo carro”, diz Kelley. Roger Martin, diretor da Rotman School of Management, da University of Toronto, no Canadá destaca o fato de a Ideo ter passado do design de objetos para o design dos processos organizacionais. “Eles concluíram que os mesmos princípios podem ser aplicados no design de procedimentos de um pronto-socorro ou em um carrinho de supermercado”, explica.

Segundo Martin, a Ideo foi uma das primeiras a reconhecer que, para transformar a experiência do consumidor, deve-se também redesenhar a organização no que diz respeito às estruturas, à cultura e assim por diante. De outro modo, você não conseguirá produzir as experiências que quer. O pensamento de design representa um sério desafio para o status quo de companhias mais tradicionais, especialmente para aquelas em que engenheiros e profissionais de marketing estão no controle.

Patrick Whitney, diretor do Institute of Design do Illinois Institute of Technology (IIT), que manda muitos de seus formandos para a Ideo, diz que observa essa resistência o tempo todo. “Vários de meus estudantes têm MBA ou graduação em engenharia. Eles são ensinados a identificar uma oportunidade, lidar com os números disponíveis para assegurar-se daquilo e, então, otimizar.” No entanto, algumas questões precisam ser revistas antes que uma grande e nova ideia possa ser gestada. Geralmente é útil pegar o problema e dividi-lo em partes, antes de voltar a juntar tudo de um modo totalmente novo –o passo da síntese ou da abstração. É aí que o salto criativo frequentemente acontece e é onde o processo da Ideo funciona como alavanca.

Levou algum tempo para que Kelley analisasse o poder de dar um passo para trás antes de avançar. Em meados da década de 1980, diz, ele costumava escrever propostas com as várias fases do processo – compreensão, observação, criação e protótipo –, e a precificação era abordada de modo separado. Os clientes invariavelmente diziam: “Não perca tempo. Comece pela fase três”. Mas Kelley percebeu que as fases iniciais eram de onde as grandes ideias surgiam –o que separava sua empresa de um punhado de consultorias em gestão. “Depois disso me dispus a só aceitar um trabalho em que fossem respeitadas essas fases”, conta.

Hoje todos os projetos da Ideo empregam o processo, seja para redesenhar o sistema de abastecimento de água de um país em desenvolvimento, seja para desenvolver um serviço de venda de músicas. O Marriott contratou a Ideo para reformular seu TownePlace Suites, rede de hotéis de permanência média. Inicialmente os designers esperavam que essa rede hoteleira se destacasse por seus lobbies mais modernos e amigáveis. Mas, depois de andarem pelos hotéis, descobriram que os hóspedes resistiam a permanecer no lobby, pois não havia nada para fazer. Os mais felizes eram os hóspedes que conseguiam se integrar na comunidade, frequentando restaurantes, a igreja mais próxima e até o clube de tênis.

Isso levou o pessoal da Ideo a uma sessão de brainstorming sobre como fazer o TownePlace se parecer mais com um lar temporário. Um dos resultados: um mapa gigante posto na parede mostra a região em que o hotel se localiza, com destaque para os locais interessantes descobertos pelos hóspedes. Além de apresentar a região aos que chegam, também estimula conversas entre os hóspedes. Ou seja: o próprio mapa propicia o desenvolvimento de uma comunidade. Um protótipo foi feito a fim de vencer resistências. Um ano depois, o nível de satisfação dos hóspedes com o novo lobby aumentou 16,8%.

A Ideo School for Anglers ensinou métodos semelhantes à gigante de saúde norte-americana Kaiser Permanente. Após um grande e bem-sucedido projeto em 2004, que a Ideo desenvolveu para melhorar a transferência de informações nas mudanças de turno da enfermagem, a filosofia da empresa de design inspirou a criação do centro de inovação da própria Kaiser. Não faz muito tempo, esse centro enfrentou o problema dos erros de medicação e, utilizando as técnicas da Ideo, mobilizou uma equipe para acompanhar de perto enfermeiras, médicos e farmacêuticos durante o processo de prescrição e administração de remédios aos pacientes. Somente nos Estados Unidos, mais de 1,5 milhão de pessoas são prejudicadas por erros de medicação anualmente. Os dados coletados na Kaiser –vídeos e registros diários– revelaram que as interrupções eram o principal motivo dos erros. Entre as soluções sugeridas a partir das percepções e da discussão coletiva do problema, apareceram o aperfeiçoamento do processo de entrega de remédios e a proteção desse processo contra a ação de outros funcionários. Foram criados protótipos de ferramentas como aventais que diziam “Deixe-me em paz” e faixas para proteger os dispensers de comprimidos. O programa foi tão bem-sucedido –reduziu as interrupções em 50% e aumentou a taxa de entrega no horário em 18%– que a Kaiser está estendendo o programa para suas 36 instalações e respondendo a estudos de todo o mundo sobre sua eficácia.

Comercial da GAP com trilha sonora de Daft Punk

A Coca-Cola lutava para fortalecer a sua marca entre o público mais jovem, e para isso em 1994 criou uma música que estourou nas rádios, que a tocavam em diversas versões (pop, dance, folk etc). A música “Always Coca-Cola” foi quase um hino da copa do mundo de 1994, que foi disputada nos Estados Unidos, onde fica a sede mundial da empresa.

Mas nem sempre uma marca cria sua própria música para agregar valores fortes para determinados grupos de consumidores. Poucas vezes em publicidade encontramos um casamento tão perfeito entre uma música e a marca que queremos agregar valor com ela. Esse é o caso da marca GAP no comercial abaixo, com a trilha sonora de Daft Punk – digital Love:

Criatividade e pensamento analítico

Além de sua mania por carros, uma das paixões mais antigas de Kelley no design é sua casa, projetada por seu amigo Ettore Sottsass, o fundador do coletivo de design Memphis. Trata-se de uma obra de arte eclética, que se espalha pelo terreno com alas assimétricas: uma verde, que se parece com um imóvel do jogo Banco Imobiliário, para sua filha; um escritório de dois andares para sua esposa; e uma casa de hóspedes, em que Kelley passou a maior parte de seu tempo enquanto estava doente.

Em 1983, ele iniciou um pequeno negócio com Sottsass, fazendo a conexão entre o design italiano e a tecnologia do Vale do Silício (o produto desenvolvido –um telefone– conseguiu espaço no MoMA, mas fracassou no mercado). Kelley compreende a crítica frequente de que o design norte-americano é inferior ao europeu: “O restante do mundo define o design como disciplina artística. Ensina-se aos designers cultura. Eu não aprendi quem pintou nada. Por isso, como norte-americanos, estamos em desvantagem”.

No entanto, embora os norte-americanos estejam sub-representados na Feira de Móveis de Milão (Itália), lembra Kelley, os EUA possuem algo em que poucos países conseguem se igualar: diversidade. Segundo ele, a população multicultural dá a seu país uma vantagem extraordinária na geração de ideias verdadeiramente criativas. Essa percepção foi uma das que motivaram a criação da d.school, local que ajudaria os profissionais de perfil tipicamente analítico de Stanford a se tornar pensadores criativos.

A escola receberia alunos das áreas de negócios, direito, educação, medicina, engenharia –quanto mais diversificados, melhor. Nos anos recentes, universidades em todo o país desenvolveram uma obsessão pela colaboração interdisciplinar. Uma das mais destacadas histórias de sucesso, o James H. Clark Center for Biomedical Engineering and Sciences, encontrase dentro do campus de Stanford. Ainda assim, levou oito anos para que Kelley convencesse a universidade de que essa ideia pouco convencional –uma escola que não garante diploma de graduação e funciona mais como um programa de especialização para graduados– tinha seus méritos. “Quando David estava preparando sua defesa da d.school em Stanford”, conta Tom Kelley, “ele foi falar com o reitor da universidade e disse: ‘Nossa academia é boa em assuntos de grande complexidade e profundidade. Temos prêmios Nobel e tudo. Mas o que acontece quando os problemas não são resolvidos pela especialização, mas pela visão mais ampla da questão? Deveríamos colocar um pé aí também’. ”

Nesse clima, o conceito de Kelley finalmente começou a encontrar seu público. Por volta de 2005, ele já havia convencido Hasso Plattner, um dos fundadores da gigante do software SAP, a investir US$ 35 milhões na d.school, que ganharia nova sede, no meio do campus de Stanford, e o nome Hasso Plattner Institute of Design. “Programas como esse são absolutamente necessários nos Estados Unidos se o país quiser manter sua posição no campo da inovação”, diz Plattner da sede de sua empresa em Walldorf, Alemanha. “Para muitos produtos, trata-se de uma estratégia obrigatória para a sobrevivência. E David é tão apaixonado pelo tema que conseguiu me motivar.” Kelley ainda está um pouco assustado com o que ele tem sido capaz de fazer acontecer em Stanford. “Estou aqui há 30 anos, e ninguém prestava atenção em mim”, diz ele. “Em certo momento, eles tentaram reduzir o tamanho de meu escritório. Agora, eu tenho assento em reuniões com o presidente, e ele me pergunta se quero outro prédio.”

Se o pensamento de design está revolucionando o mundo, ainda não se sabe, mas a influência de Kelley certamente vai permanecer nas instituições que ele construiu e nas pessoas com as quais ele teve contato. Hoje ele está livre do câncer, cheio de energia e com muitos planos para o futuro. Cada seis meses, entretanto, tem de se submeter a exames para garantir que a doença não se espalhou para outras partes do corpo. É uma lembrança constante e terrível de que, para todos nós, a vida é curta. “Estou sentado aqui hoje consciente de que a doença pode voltar. Por isso, é melhor eu aproveitar a oportunidade que ainda tenho para difundir o máximo possível minha ‘religião’. E isso está indo bem.”


Fonte: Revista HSM Management. Este artigo foi publicado originalmente na Fast Company por Linda Tischler