Agora o talento é o principal fator de produção e a região constitui a unidade de organização da economia mundial. Passa a haver basicamente duas classes sociais –os especialistas (criativos) e os outros– e as desigualdades se acentuam, diz Richard Florida, da George Mason University.
Em maio de 2003, conheci Peter Jackson, cineasta responsável pela trilogia O Senhor dos Anéis, em Wellington, na Nova Zelândia. Jackson fez algo inusitado em sua cidade natal, que conta com aproximadamente 400 mil habitantes: construiu um dos mais avançados complexos cinematográficos do mundo –um “ímã de talentos globais”, como ele o chamou.
Para lá, ele pôde atrair os melhores cineastas, técnicos de som, artistas de computação gráfica, construtores de maquetes e editores do mundo inteiro. Ao passar por um mapa na parede com alfinetes mostrando os países de origem dos funcionários do estúdio, o chefe da animação digital brincou que a organização se parecia mais com a Organização das Nações Unidas do que com um estúdio de cinema.
Jackson me disse que seu principal atrativo era oferecer trabalho excitante e desafiador com um futuro seguro em uma cidade com belezas naturais em abundância, moradias por preços módicos e excelente qualidade de vida para as pessoas de praticamente qualquer faixa de renda.
A realização de Jackson na minúscula Wellington não levou em conta nenhum dos recentes debates sobre competitividade de negócio, empregos ou crescimento econômico –mas deveria.
Economistas e quem estabelece políticas econômicas nos Estados Unidos estão, com razão, preocupados com o surgimento de mastodontes como a Índia e a China, que oferecem enormes mercados, forças de trabalho capacitadas e vantagens de custo. Infelizmente, eles negligenciam uma mudança mais sutil, mas ainda mais profunda da natureza da competição mundial.
Nas últimas duas décadas e meia, essa mudança nos levou do antigo modelo industrial para um novo paradigma econômico, no qual o conhecimento, a inovação e a criatividade são essenciais. Na crista dessa mudança está o setor criativo da economia: ciência e tecnologia, artes e design, cultura e entretenimento, e as profissões baseadas no conhecimento.
Os Estados Unidos estão na vanguarda dessa economia criativa globalizada. Na próxima década, eles devem acrescentar mais 10 milhões de empregos no setor criativo, segundo os números mais recentes do Bureau of Labor Statistics.
Se mantida a taxa atual de crescimento, apenas os empregos criativos logo superarão o número total de empregos de todo o setor de manufatura. Mais de 40 milhões de norte-americanos já trabalham no setor criativo, que cresceu em 20 milhões de empregos desde a década de 1980. Ele é responsável por mais de US$ 2 trilhões –ou quase metade– de todos os salários pagos nos EUA.
Um crescimento de empregos tão notável vai muito além da tecnologia e engenharia. Embora a economia dos EUA vá adicionar 950 mil empregos no setor de computação e outros 195 mil no de engenharia, os maiores ganhos serão, de longe, nos setores de assistência à saúde e à educação, que acrescentarão mais de 3,5 milhões de empregos.
Projeta-se que só as vagas para professores universitários aumentarão em mais de meio milhão. Artes, música, cultura e entretenimento contribuirão com cerca de 400 mil novos empregos. Isso é o dobro do que a engenharia.
As Regras mudam – de quatro modos
A ascensão dessa economia criativa mundial muda as regras da competição internacional de quatro maneiras cruciais.
Primeiro, torna o talento o fator fundamental de produção.
A vantagem econômica não mais depende dos recursos naturais, matérias-primas, comércio de produtos e serviços, fábricas gigantes ou até dos crescentes mercados de consumo.
A fonte real de criação de valor e, portanto, de competitividade internacional é o talento criativo. De forma mais simples, vencem os lugares que conseguem produzir e mobilizar seus próprios trabalhadores criativos e atrair esses talentos de fora.
Atraí-los, desde inventores-empreendedores como David Sarnoff e Andy Grove aos cientistas Albert Einstein e Enrico Fermi, foi o segredo para a vantagem norte-americana nos campos da ciência e tecnologia durante todo o século 20.
Hoje, esse pool de talentos estrangeiros continua a impulsionar o crescimento dos EUA, com empresas de ponta desde Google e Yahoo! até eBay e Sun Microsystems, todas fundadas ou co-fundadas por norte-americanos nascidos no exterior.
Contudo, conforme demonstra o sucesso de Jackson em Wellington, o mundo inteiro tem incrementado seus esforços para colher esse talento. China e Índia vêm trabalhando para atrair seus próprios renomados cientistas e empreendedores, enquanto Canadá, Austrália e muitas nações do restante da Europa e escandinavas dedicam seus esforços para chamar destacados estudantes de pós-graduação, acadêmicos e criativos culturais do mundo inteiro.
Os EUA não deveriam se preocupar em perder no mercado mundial de trabalho de baixo custo e baixa qualificação, mas sim com o fato de outros países irem lentamente mordiscando sua capacidade de crescer, atrair e reter a nata do talento criativo.
Qualquer tentativa de reformar a lei de imigração tem de tornar os Estados Unidos mais amigáveis, e não menos do que são, para essa crucial fonte de talento e vantagem econômica.
Em segundo lugar, o novo campo de jogo torna as regiões a unidade organizacional fundamental em termos econômicos e sociais na economia mundial.
É verdade que a tecnologia possibilita a difusão e a descentralização das atividades, levando ao que Tom Friedman gosta de chamar de “achatamento” da economia mundial. Contudo, a tremenda produtividade e a criatividade que surgem da alta densidade dão forma a uma poderosa contraforça: o agrupamento e a concentração geográfica.
Em decorrência disso, a vanguarda da economia mundial está se modelando em torno de um número relativamente pequeno de regiões –lugares que Bill Gates adequadamente chamou de “ímãs de QI”. Algumas delas são centros criativos, tais como Nova York, Londres, Paris e Tóquio.
Outras são centros de ciência e tecnologia (as São Franciscos e Bostons), poderosos centros regionais (pense em Taipé e Cingapura) e ímãs de talentos diversos (de Sydney e Melbourne a Amsterdã e Dublin, Toronto e Vancouver).
Esse agrupamento de talentos é igualmente predominante nas economias emergentes, principalmente Índia e China, nas quais a atividade econômica e tecnológica está se tornando cada vez mais concentrada do que no mundo desenvolvido.
Um pequeno número de florescentes megarregiões como Bangalore, Nova Déli, Xangai, Pequim e Guangzhou estão sugando talentos do interior, conectando-se à economia mundial e deixando o resto desses países para trás. Dentro dessas regiões também –como nas áreas metropolitanas dos EUA– o divisor econômico entre os trabalhadores de alta e baixa qualificação está aumentando. [Fenômeno similar ocorre no Brasil.]
Em terceiro lugar, as próprias forças de concentração que impulsionam o crescimento da economia criativa mundial também estão produzindo novas e poderosas divisões sociais, culturais e políticas nos Estados Unidos.
Ed Leamer, economista da University of California em Los Angeles, chamou essa divisão de “especialistas versus os sem formação específica”. Um modo melhor de ver isso é a crescente divisão entre os que desfrutam um trabalho de maior capacitação e remuneração mais alta no setor criativo e os que têm um trabalho de menor qualificação e remuneração mais baixa.
Não é coincidência que esses sejam os dois setores da economia dos Estados Unidos que estão apresentando rápido crescimento. A seus 10 milhões de novos empregos do setor criativo, a economia norte-americana agregará mais 5 milhões de empregos de serviços, na maioria de baixa remuneração, na próxima década –inclusive 735 mil pessoas em vendas de varejo, 550 mil trabalhadores em serviços de alimentação, 470 mil representantes em atendimento ao cliente, 440 mil serventes dedicados à limpeza, 375 mil garçons e garçonetes e 230 mil jardineiros e garis.
Números impressionantes: até a pessoa levar em conta que esses empregos remuneram um terço do que é pago aos funcionários em cargos criativos e metade do que os trabalhadores industriais recebem.
À medida que os Estados Unidos perdem outro meio milhão de empregos industriais de alta remuneração na próxima década para a automação, maior eficiência e terceirização, seu mercado de trabalho está essencialmente se separando em duas classes econômicas distintas: trabalho criativo de elevada qualificação e alta remuneração e trabalho de baixa qualificação e remuneração muito mais baixa na economia de serviços.
A tarefa com que deparam os líderes econômicos do século 21 não é simplesmente como estimular a tecnologia e a inovação, mas como recriar o grande pool de empregos de alta remuneração, mas relativamente de baixa qualificação, que antes era a marca distintiva de nossa ampla sociedade de classe média.
Uma vez que nem todos podem ser cientistas, artistas ou profissionais, e que grande número dos empregos industriais simplesmente não voltará, a melhor estratégia pode ser transformar os milhões de novos empregos do setor de serviços que a nossa economia está gerando em empregos seguros, respeitáveis e de alta remuneração.
Quando perguntei a alunas minhas se prefeririam ter um emprego bom e altamente remunerado numa metalúrgica ou um emprego temporário com remuneração mais baixa em um salão de beleza, elas esmagadoramente preferiram o último, pois é um trabalho criativo mais recompensador psicologicamente falando.
De fato, enquanto os programas de treinamento vocacional para torneiros mecânicos estão implorando por alunos, as aulas de cosmetologia estão com gente saindo pelas janelas.
A questão não é que os empregos de cabeleireiro sejam inerentemente melhores do que os de fábrica, mas que nossa única possibilidade de evitar uma sociedade de duas classes é tornar os empregos em serviços melhores e com maior remuneração para a classe média. E os empregos em serviços pessoais –manicure, jardineiro, massagista, entre outros– são provavelmente os menos vulneráveis à terceirização.
Há os que dizem que as forças do mercado conspiram para manter baixos os salários desses empregos, e outros que afirmam que a única maneira de melhorá-los é com intervenção maciça do governo. Entretanto, empresas de todos os Estados Unidos e do mundo –da Starbucks e da Whole Foods à Target e à Container Store– estão bolando estratégias para melhorar o trabalho em serviços. Elas estão aumentando os salários e benefícios e capacitando os funcionários a usar seus talentos criativos para atender melhor os clientes –sem falar no que isso melhora o resultado financeiro final.
Talvez o melhor exemplo seja a Best Buy, que emprega 90 mil pessoas e é a maior varejista do mundo especializada em produtos eletrônicos de consumo, com vendas anuais de cerca de US$ 25 bilhões.
Utilizando parte do badalado sistema de gerenciamento da Toyota, Brad Anderson, presidente-executivo da Best Buy, fez com que a missão declarada de sua empresa fosse fornecer um “ambiente de trabalho inovador e inclusivo destinado a liberar o poder de todo o nosso pessoal para que se divirtam e também sejam os melhores”.
Os funcionários são estimulados a melhorar os processos e as técnicas de trabalho da empresa para tornar o ambiente de trabalho mais produtivo e agradável ao mesmo tempo que aumentam as vendas e os lucros. Em muitos casos, uma pequena mudança feita no piso de vendas –por um adolescente representante de venda que reformulou um display da Vonage ou um vendedor de origem estrangeira que bolou uma maneira de aumentar a inclusão, publicidade e atendimento às comunidades não-anglófonas– foi implantada no país inteiro, gerando centenas de milhões de dólares em aumento de receita.
Anderson, da Best Buy, entende que aproveitar o poder total da economia criativa significa mais do que implantar nova tecnologia e projetar produtos atraentes. Ele gosta de dizer que a grande promessa da era criativa é que, pela primeira vez na história, o desenvolvimento ulterior de nossa competitividade econômica depende do desenvolvimento mais completo das capacidades criativas do ser humano. Em outras palavras, nosso sucesso econômico cada vez mais utiliza os talentos criativos das pessoas, não importam o sexo, a idade, a raça, a etnia ou a orientação sexual.
Em quarto lugar, a economia criativa está dando origem a divisões cada vez mais extremas entre o número relativamente pequeno de regiões privilegiadas e o resto do mundo.
Friedman escreve que: “Você não tem mais de emigrar para inovar”. Entretanto, para a grande maioria da população mundial, isso não se aplica. Mesmo que cientistas de primeira linha retornem a centros criativos em expansão na China e Índia, os países e as regiões mais pobres do mundo continuam a exportar mais da metade de seu talento científico e de engenharia para as economias desenvolvidas, de acordo com recente estudo do Banco Mundial.
A disparidade econômica está aumentando à medida que potentes regiões criativas como a californiana São Francisco registram taxas de desigualdade de renda e de habitação inusitadas, que não se viam desde a década de 1920. A renda de Pequim e Xangai aumentou três vezes e meia mais do que a da China rural.
Assim, embora seja crucial estimular o investimento em ciências e engenharia e diminuir a lacuna crescente na base internacional de talentos de tecnologia, os líderes empresariais e dos governos devem também reconhecer que as principais fontes de crescimento de emprego na economia criativa são de setores de fora da alta tecnologia. Continuar no rumo atual significará concentrações regionais de renda muito mais altas, maior desigualdade econômica, crescente divisão de classes e, no final, piora da tensão e agitação política dentro dos países e em escala mundial.
É hora de acordar para as novas realidades da economia criativa e parar de desenvolver políticas para uma era industrial já ultrapassada. Nosso único caminho adiante é fazer com que a economia criativa trabalhe para nós –ao encetar esforços regionais, nacionais e mundiais para aproveitar a criatividade de cada ser humano, alinhar o desenvolvimento ulterior das capacidades criativas com o crescimento e desenvolvimento posterior de nossas economias. Fizeram isso em Wellington; o desafio de nossa era é como fazê-lo não apenas em uma região ou mesmo em um país, mas numa escala verdadeiramente global.
Sobre o autor Richard Florida
Ele é professor da School of Public Policy da George Mason University, com campi no Estado da Virgínia, próximos à capital dos Estados Unidos, Washington. Escreveu The Flight of the Creative Class (ed. HarperCollins) e o best-seller The Rise of the Creative Class (ed. Basic Books), entre outros livros.
Fonte: Cato Institute, publicado no Brasil pela revista HSM Management