Renault Nissan surpreende novamente

Conhecido como especialista em crises, o CEO e Chairman da Renault Nissan Alliance quer antecipar-se aos problemas em vez de consertá-los, indo aonde o crescimento está, como ele disse nessa entrevista.

Em dezembro deste ano, começa a rodar o Nissan LEAF, apresentado como o primeiro carro inteiramente elétrico do mundo. Serão produzidas 50 mil unidades suas, a um custo de cerca de US$ 34 mil, para venda nos Estados Unidos e no Japão. Nesses países, a Nissan conseguiu fechar acordos com os governos para criar postos de recarga elétrica –a autonomia do veículo é de 160 quilômetros–, descontos em pedágio como incentivo e linhas de financiamento para compra. No Brasil, ao menos em São Paulo, o Nissan LEAF talvez chegue em 2012.

O modelo pode ser visto como um marco de inovação da indústria automobilística mundial. Ou, ainda, como sinal definitivo da chegada da economia pós-industrial. Ou, então, como mais um objetivo ousado que o executivo brasileiro Carlos Ghosn estabeleceu e cumpriu antes do prazo.

Serve especialmente para entender melhor Ghosn, CEO e chairman da Renault-Nissan Alliance, a corporação franco-nipônica de cerca de US$ 126,3 bilhões em receitas e 350 mil funcionários, que é terceira no ranking das vendas mundiais –com 6 milhões de automóveis comercializados em 2009 (agora incluindo a marca russa Lada), o que lhe garantiu aumento de market share de 9,4% para 9,8%.

No passado, Ghosn determinou demissões em massa para recuperar Renault e Nissan; criticou a cultura da primeira, dizendo que “valorizava frases bonitas e sabedoria esotérica”; rompeu parcerias tradicionais quando desmontou o keiretsu da segunda.

Foi percebido por muitos, provavelmente, como um gestor quase desumano, focado sobretudo em custos, “Le Cost Killer”. Agora, ele está mostrando que aquele foi um foco apenas circunstancial, em resposta a crises. E, mesmo a crise sendo uma constante daqui para frente –“a atual crise terminará e outra, de natureza diferente, virá a qualquer momento no futuro”–, ela não pode constituir um foco permanente, em seu raciocínio.

O imperativo passa a ser, isto sim, anteciparse aos impactos das próximas crises, o que se consegue, segundo ele, somente indo aonde o crescimento está.

Os bons entendedores já entenderam. Ghosn desautoriza explicitamente sua fama de matador de custos. “Cortar custos em si é algo muito simplista, pois ignora as complexidades da retomada do desempenho em empresas problemáticas.”

E insiste: “O que importa é ir aonde o crescimento está”. Nesta entrevista exclusiva que levou mais de 15 minutos (tempo médio de uma reunião com Ghosn), concedida a Adriana Salles Gomes, editora-executiva de HSM Management, o executivo nascido em Rondônia destaca tanto os espaços de crescimento do século 21 como a “nova” obrigação de priorizar o pensamento de longo prazo, passando pela necessidade de que líderes e gestores se aliem.

Carlos Ghosn já foi comparado com a serpente amazônica brasileira anaconda, no sentido de que, enquanto todos observam perplexos a onça-pintada que acabou de ser engolida, ela já pensa na próxima refeição. Pois é dessa maneira mesmo que o mais poderoso dos executivos brasileiros surpreende continuamente o mercado mundial. Preste atenção, leitor, está acontecendo de novo.

Entrevista do CEO da Renault Nissan

O sr. é considerado um artista de viradas e ficou famoso por dizer que “quando uma empresa tem problemas, é sempre culpa dela mesma”. Mas agora a crise parece sair das fronteiras corporativas. É possível promover viradas atacando, ao mesmo tempo, problemas internos, setoriais e dos mercados?

É possível, claro, mas não se faz isso enfatizando corte de custos. Apesar do meu apelido de “Le Cost Killer”, digo que cortar custos em si é algo muito simplista, pois ignora as complexidades da retomada do desempenho em empresas problemáticas.

Há muitas alavancas para a performance: estratégias claras, inovação, melhoria organizacional, motivação de equipe, gestão focada, boa comunicação. A redução de custos é só uma delas. Tão ou mais importante é estabelecer as fundações do futuro da empresa.

Que receita o sr. usa hoje na Renault?

Primeiro, não se devem adiar as decisões duras que têm de ser tomadas em tempos difíceis, porque o adiamento apenas leva à piora dos problemas. Com minha experiência, cheguei a cinco requisitos fundamentais aos gestores em tempos de crise.

  1. Primeiro, avaliar a situação com o grau mais alto de lucidez. Deve-se ter um diagnóstico abrangente e compartilhá- lo com todos os funcionários, de modo que saibam de onde se parte.
  2. Em seguida, construir e compartilhar uma visão. Explicar que ações serão tomadas para lidar com a crise e o que será preparado para a era pós-crise.
  3. Terceiro, estabelecer um número muito limitado de objetivos e permanecer focado em conquistá-los.
  4. Quarto, motivar todos da empresa, explicando como podem, individual e coletivamente, contribuir para os objetivos. Mostrar que a alta administração está comprometida e é responsável também por entregar os resultados.
  5. Finalmente, aprender com a crise, porque duas coisas são certas: a atual crise terminará e outra, de natureza diferente, virá a qualquer momento no futuro.

Em maio último, o sr. foi reeleito presidente da Renault pelos acionistas e fica no comando por pelo menos mais quatro anos. Isso significa, entre outras coisas, que, mesmo com a crise setorial, há sinais de melhoria visíveis na empresa?

Há sinais de melhoria indiscutíveis. A Renault anunciou seus resultados do ano-calendário 2009 em fevereiro. O Grupo Renault alcançou receitas de 33,712 bilhões de euros e prejuízo operacional de 396 milhões. Mas comemoramos, porque atingimos o objetivo prioritário de 2009: entregar um fluxo de caixa positivo, que foi de 2,088 bilhões de euros. Já os resultados da Nissan no ano fiscal de 2009, encerrado em março de 2010, foram melhores: registramos receita de 7,517 quatrilhões de ienes e lucro líquido de 42,4 trilhões.

Sabe-se que nem mesmo as demissões que o sr. fez mancharam sua reputação. Como conseguiu a proeza de não ser considerado insensível?

Comunicação. Quando as pessoas compreendem por que as decisões difíceis são tomadas em um contexto específico, tendem a aceitá-las e apoiá-las.

Como está sendo esse processo de virada da Renault, que se iniciou em abril de 2005, quando o sr. assumiu o cargo de CEO mundial? O sr. vem praticando à risca o receituário que acaba de nos passar? Por exemplo, trata-se de uma empresa de cultura bastante forte. Cultura é algo que se muda de verdade?

Não se pode mudar a cultura de uma empresa se os funcionários sentirem que a mudança desafiará sua identidade, mas é possível influenciar a maneira como as pessoas trabalham se você explicar por que uma mudança de mentalidade ou comportamento as ajudaria a alcançar seus objetivos e aperfeiçoar resultados. O lado bom é que os funcionários da Renault são conscientes dos problemas da empresa e reconhecem que a mudança é necessária. A Renault é uma organização bastante complexa, com processos pesados e delegação insuficiente.

O desafio na Renault, iniciado em 2005, é maior ou menor do que o da Nissan?

É difícil comparar as situações da Nissan e da Renault, porque as circunstâncias eram inteiramente diferentes. Eu diria que nunca é fácil fazer mudanças significativas em uma grande empresa, porque tamanho e complexidade atrapalham as coisas. Nos dois casos, e em todos, aliás, é importante apresentar uma visão muito bem definida para a direção da empresa. Se houver um mapa claro e um número limitado de objetivos, é mais fácil motivar as pessoas a fazer as mudanças necessárias e seguir adiante na mesma direção.

Quatro anos atrás, o sr. decidiu tentar algo praticamente sem precedentes no mundo corporativo: permaneceu como CEO e presidente do conselho da Nissan e assumiu como CEO (e desde o final de 2008 como presidente do conselho) da Renault. Estamos diante de um novo modelo de executivo, o CEO ponte-aérea? Como o sr. consegue fazê-lo?

Basicamente, trabalho metade do mês na Renault e metade na Nissan. Tenho a sorte de ser apoiado pelas pessoas que coordenam minha agenda para cada empresa e para a Alliance. E os diretores de operações da Renault Nissan trabalham comigo para assegurar que o desempenho de cada uma delas permaneça em um nível focado e alto.

Fui aprendendo a me ajustar às demandas da minha agenda ao longo de muitos anos. E uso todas as ferramentas que tenho à disposição –e-mail, videoconferências, teleconferências– para me comunicar com as equipes, trocar informações e manter a ênfase em nossas prioridades estratégicas.

Nenhum arrependimento? Como o sr. concilia todos seus compromissos da Renault Nissan com a vida pessoal?

Veja bem: não estou certo de que meu trabalho abranja muito mais viagens do que seria exigido de qualquer outro CEO global. A vida pessoal requer atenção às prioridades também. Minha família sempre me apoiou e nosso tempo juntos é precioso. Nós mantemos contato próximo uns com os outros e, quando estamos juntos, eu lhes dou minha atenção e meu foco completos.

O fato de serem dois países, com culturas bem distintas, facilita ou dificulta a gestão? O sr. não é um CEO de um novo modelo, que, brincando, chamei de “ponte-aérea”, mas sua gestão é de um modelo, não? O modelo transcultural… O sr. subverteu tanto o pensar globalmente e agir localmente como o contrário disso.

Eu considero “pensar” e “agir” palavras-chave e as uso em ambas as direções, dependendo do que se empreende. Por exemplo, para carros elétricos, pense globalmente, aja localmente; para carros de custo ultrabaixo, pense localmente, aja globalmente. E complemento que pensar apropriadamente é 5% do trabalho e executar apropriadamente, 95%.

Então, quando pertinente, o sr. concorda com o que Vijay Govindarajan, agora professor-residente da GE, diz sobre a inovação reversa, que significa pensar localmente, sobretudo nos países emergentes, e agir globalmente?

Sim, a inovação reversa é o que faremos com o automóvel de custo ultrabaixo que estamos desenvolvendo com fabricantes indianos. Eles têm habilidade maior para o design, a engenharia e a manufatura de carros modestos com preço de entrada muito baixo.

Obteremos o produto local deles e agiremos globalmente para transferir sua inovação em escala muito maior para vários mercados emergentes. O princípio que manda é o do pragmatismo: selecionar o que funciona melhor em cada caso e replicar esse sucesso, dando-lhe escala, para criar mais valor.

O sr. chegou aonde eu ia chegar, mencionando o ULC, sigla que vem ficando famosa para designar carro “ultra low cost” ou de custo ultrabaixo. Ao lado do carro elétrico, essa é a dupla aposta de inovação da Renault-Nissan Alliance. É o futuro que o sr. vê para a indústria automobilística? Porque têm surgido start-ups de crowdsourcing de design, como Local Motors, carros voadores…

Nós acreditamos que os carros de custo ultrabaixo terão papel fundamental no mercado de automóveis de amanhã. Especialmente em mercados emergentes, uma nova classe média está se desenvolvendo, e mais pessoas aspiram a possuir um carro. Os automóveis comuns produzidos em países desenvolvidos são muito caros para a maioria dos consumidores de mercados emergentes, mesmo quando produzidos localmente.

A chave é pressionar por maior “localização” –ter os insumos do carro e sua fabricação próximos de onde ele será vendido– enquanto se abordam o design e a engenharia de maneira mais simples. A outra vertente do futuro do setor, a nosso ver, enfatizará tecnologias ambientais, porque as sociedades estão cada vez mais preocupadas com a ameaça da mudança climática e com o preço e a disponibilidade de petróleo.

Renault-Nissan vão concorrer com o Tata Group, então…

Nosso alvo é produzir um carro com preço inferior a US$ 3 mil que interesse aos consumidores locais, e fizemos uma parceria com a fabricante indiana Bajaj para isso. O carro de custo ultrabaixo é boa solução para países emergentes, onde o mercado de automóveis deve dobrar até 2020. Temos de estar onde o crescimento está. Precisamos desenvolver o adequado alinhamento de produto e ter capacidade industrial para ser competitivos em qualquer segmento. Estamos sistematicamente desenvolvendo nossa presença em regiões onde as próximas ondas de crescimento estarão –China, Índia, Brasil, Rússia, Oriente Médio, norte da Argélia e Sudeste Asiático.

Pausa para um vídeo do Youtube: conheça o carro 100% elétrico, o Nissan Leaf

E sobre a frente ambiental?

Como se sabe, todas as montadoras estão investindo pesadamente em novas tecnologias para reduzir as emissões de CO2, não apenas Renault e Nissan. Há amplo escopo de tecnologias que atendem a esse requisito e um leque estendido de produtos, e nós definimos que temos de estar em todos os mercados. São investimentos imensos. Daí a consolidação das montadoras no mundo não surpreender.

Volumes maiores permitem amortizar melhor os investimentos e reduzir custos. Na Alliance, já temos escala suficiente –foram mais de 6 milhões de unidades vendidas em 2009–, mas continuamos buscando outras parcerias com outras montadoras para aumentá-la ainda mais. Um exemplo é nossa recente cooperação estratégica com a Daimler, que aumentará nossa competitividade, conforme estabelecermos colaboração.

O sr. citou o amplo escopo de tecnologias. Por que, entre todas, a Alliance optou pelos carros elétricos, como o LEAF da Nissan? O que o sr. pensa sobre soluções mais radicais, como o hipercarro de Amory Lovins?

Não diria que os carros elétricos sejam a resposta para todos os desafios que as cidades enfrentam, mas são certamente uma solução adequada às preocupações com o ar nos ambientes urbanos, bem como com poluição sonora, congestionamentos, dependência de petróleo e mudança climática.

Usar hidrogênio, como no hipercarro, é caro e, provavelmente, levará muitos anos para termos um produto acessível no mercado, enquanto a eletricidade está disponível e pode ser produzida a partir de uma série de fontes –carvão, petróleo, água, vento, sol, madeira, energia nuclear. Aí um setor importante da economia deixa de depender de uma única commodity. Só a eletricidade proporciona tantas fontes.

Qual é o maior desafio de inovação embutido no carro elétrico exatamente?

É o de produzi-lo num preço acessível. Para isso, vamos comercializá-lo em escala. Somente o futuro dirá se acertamos, mas estamos confiantes.

Seus esforços de pesquisa e desenvolvimento (P&D) do carro elétrico são baseados principalmente no Technocentre, na França, não é? Mas os do carro de custo ultrabaixo estão no parceiro indiano. Como tem sido essa inovação descentralizada? Inova-se no Brasil?

A Renault tem, no Brasil, um centro de engenharia e um centro de design –que ajudou a desenvolver o Sandero, por exemplo, lançado no País antes de em outras partes do mundo. Também foram engenheiros brasileiros que desenvolveram o Sandero Stepway.

A Renault e a Nissan seguem o princípio da rede para inovar. Temos centros de design e engenharia na China, Coreia, Índia, Romênia e Brasil. Desenvolvendo produtos perto de onde serão vendidos, podemos adaptá- los melhor às necessidades e aos desejos dos consumidores e gerar volume. Mas mantemos capacidade de desenvolvimento em mercados maduros também.

O sr. sempre foi pela visão de longo prazo, mas poucos eram. Isso melhorou?

Diz a sabedoria popular que “você não se planeja para o futuro; você o constrói”. É preciso ter uma visão para construir o futuro. Isso é especialmente verdadeiro em tempos agitados como os atuais. Para sustentar a motivação das pessoas a fazê-lo, você tem de definir prioridades e colocar todo mundo na mesma direção.

A visão da Renault-Nissan Alliance é clara: queremos criar valor sustentável para todos os stakeholders. Isso implica longo prazo e, para tanto, estamos focando quatro direções: assumir a liderança na produção de veículos de massa do tipo emissão zero e na de carros de custo ultrabaixo, desenvolver nossa presença em mercados emergentes e reforçar a Renault-Nissan Alliance.

Demissões em massa não atrapalham essa construção de futuro?

Você tem de fazer o que é necessário e do modo mais sensato e sensível possível, senão, atrapalha o futuro também. Por exemplo, no ano passado, em vez de demitirmos, seguindo o que nossa situação financeira requeria, implantamos cargos de meio período para funcionários administrativos e de produção. Eles asseguraram o emprego e nós mantivemos as competências que eram necessárias para conservar a empresa nos trilhos.

O sr. é o líder empresarial brasileiro de maior destaque na cena internacional. Há um jeito brasileiro de liderar?

Acho que a boa liderança independe de nacionalidade. Há diferenças culturais, mas os fundamentos são os que sempre se aplicam: visão, boa capacidade de comunicação, credibilidade, empatia, capacidade de motivar as pessoas, habilidade de entregar resultados etc. E eu acrescentaria que as empresas precisam tanto de líderes como de gestores. Líderes são necessários para que haja uma visão atraente para a empresa e para comunicá-la claramente, de modo que as pessoas se motivem a alcançá-la; e gestores, para executar as ações e atingir isso.

Como é o bom gestor?

É o que presta atenção, entende onde está e o que motiva as pessoas. Escuta ativamente, pergunta, estuda, sem ideias preconcebidas. Prioriza soluções diretas e simples. Sabe tomar decisões e apoiar os outros na ação. Comunica planos com clareza e tem métricas para acompanhar sua evolução. É coerente e transparente.

Nesta edição, o filósofo Mario Sergio Cortella diz que diversidade é chave também na gestão. O sr. concorda?

Sim. As melhores ideias são, geralmente, resultado do trabalho com pessoas que não pensam e não veem as coisas exatamente como nós vemos. A abordagem transfuncional e transcultural é talvez a mais valiosa.


  • Fontes: Revista HSM Management