A rede de lojas Renner precisava mudar para voltar a encantar as clientes; conheça os bastidores da transição da filosofia de encantamento da loja de departamentos tradicional para o modelo fast retailer. Esse artigo foi publicado em 2017 na revista HSM Management e é de autoria do presidente da Renner, José Galló. Ele é presidente desde 1999 do Grupo Renner, que hoje inclui Lojas Renner, Camicado e YouCom, com receita líquida acumulada de R$ 5,7 bilhões em 2016 e lucro de R$ 625 milhões.
No final da primeira década do século 21, enquanto nos movimentávamos para ampliar nossa presença no mercado por meio da Camicado e da YouCom, tínhamos uma clara percepção: havia uma migração do que se convencionou chamar de velho varejo para o novo varejo. O velho varejo é representado pelas redes que seguem operando com grandes lojas de departamentos, no modelo multimarcas, cuja proposta de amplos espaços e imensa variedade de produtos conflita com o pouco tempo disponível na agenda da mulher moderna, que busca agilidade no atendimento.
São tantas as opções oferecidas nessas lojas que a escolha se torna difícil, e a experiência de compra, confusa e demorada. Assim, o que era para ser um ato prazeroso resulta em dúvidas e até provoca certa angústia: a cliente sai da loja sem se sentir encantada e se perguntando se realmente comprou o melhor produto, pelo preço mais baixo.
Foi assim que JCPenney, Macy’s e Bloomingdale’s (Estados Unidos), Liverpool (México) e El Corte Inglés (Espanha), para citar apenas algumas, começaram a perder terreno para o chamado novo varejo, que aposta em lojas menores, oferecendo menos opções, mas com maior frequência de coleções, com marcas próprias, o que as aproxima dos desejos da consumidora e facilita a escolha, por estarem mais atualizadas.
Ao mesmo tempo, amplia-se também a frequência média, uma vez que as consumidoras estarão sempre em busca de lojas que constantemente ofereçam novidades. Seguem essa tendência, cada uma com suas características próprias, Zara (Espanha), Uniqlo (Japão), H&M (Suécia), Forever 21 (Estados Unidos), entre tantas outras. Essas cadeias operam com base na inteligência de mercado e no conhecimento aprofundado das preferências e tendências de consumo, com alta reatividade dos fornecedores, assim como na agilidade na informação, em conexão direta das lojas com a matriz. São as fast retailers.
Naquele momento, parecia-nos que a Lojas Renner estava a meio caminho entre o velho e o novo varejo. Havia um bom trabalho a ser feito para alcançarmos o nível de excelência que nos colocasse na condição de protagonista entre as empresas de classe mundial em fashion retail. A partir daí, passamos a trabalhar fortemente na construção do que chamamos internamente de “nova Renner”, ainda mais rápida em seus processos e mais assertiva na oferta de produtos para suas clientes.
O objetivo passava a ser aumentar a reatividade diante das tendências de mercado, reduzindo o lead time do processo de planejamento, desenvolvimento e compra e, ao mesmo tempo, desenvolvendo de forma contínua e fracionada, considerando as informações das lojas e do mercado.
Uma das constatações que fizemos foi a de que, ao menos até 2011, em torno de 40% do tempo dos nossos gerentes de loja era consumido em burocracia operacional, treinamentos etc. Para que pudéssemos ser mais rápidos, para melhor e mais rapidamente atender nossas clientes, era preciso alterar essa realidade, simplificando o trabalho do gerente, para que ele pudesse estar mais atento ao consumidor.
Isso porque, no fashion retail, cresce em importância o papel da loja, no sentido de entender o que o consumidor quer e, principalmente, o que ele não quer. Essas percepções das lojas passaram a ser compartilhadas com o setor de compras, na matriz, que até então tinha a decisão exclusiva sobre que produtos compraríamos, com uma frequência quase diária, todos buscando detectar o mais rapidamente possível as tendências para os próximos meses.
Na verdade, nosso departamento de estilo trabalha sempre com seis meses a um ano de antecipação de tendências, estudando o que está preponderando na moda no hemisfério norte (e que vai inevitavelmente chegar ao hemisfério sul), enquanto as lojas vivem mais o presente, o curto prazo.
A combinação do trabalho em todas as pontas é fundamental. Na prática, existem sempre de três a cinco tendências, e a decisão sobre qual vamos escolher é compartilhada, levando em conta as percepções que vêm das lojas, as tendências detectadas pela área de estilo e a visão da área de compras. Nessa avaliação, também já se consideram as quantidades a serem encomendadas aos fornecedores.
Também é importante ressaltar que a área de compras, para dar conta de assegurar agilidade à empresa, precisaria de uma cadeia de fornecimento muito rápida, que conseguisse produzir, em curto espaço de tempo, os produtos que queríamos colocar nas lojas o mais rapidamente possível. Só assim daria para lançarmos seis ou sete e, eventualmente, até oito coleções por ano. É o que chamamos de ciclo do fast, do rápido. E, para que isso seja possível, é preciso simplificar processos, como detalharei mais adiante.
O desafio de alcançar esse desempenho fazia sentido para nós. Afinal, havíamos assumido uma posição privilegiada no cenário nacional. Desde 2007 estávamos presentes em todas as regiões deste enorme e continental país chamado Brasil, caracterizado por uma ampla diversidade de climas e de hábitos culturais. Sabíamos que precisávamos ampliar o índice de produtos certos colocados no lugar certo e no tempo certo. E foi assim que deduzi que deveríamos adotar o conceito de push-pull, que está um passo à frente em relação à logística que adotávamos até então.
A Lojas Renner, nos anos 2000, trabalhava com o conceito de clusters. Isso significa que as lojas eram agrupadas de acordo com as seguintes premissas:
- clima: lojas quentes, frias ou híbridas, de acordo com a localização geográfica;
- tamanho de roupa: predominância de P ou M no Norte-Nordeste e de G e GG nos estados do Sul;
- cores: mais vibrantes no Norte-Nordeste, mais discretas no Sul;
- classes sociais: lojas dentro da mesma cidade atuavam de acordo com perfis diferenciados de renda.
Esses quatro clusters eram cruzados da forma mais técnica possível, mas os resultados não eram tão precisos. Considerando as muitas variáveis envolvidas, a margem de acerto na adequação dos produtos colocados nas lojas não era maximizada.
Para dar conta da variedade de características, operávamos com o conceito de grades de tamanhos diferenciados, as quais resultavam em diferentes packs de produtos. Por exemplo: um pack para uma loja do Nordeste era composto de duas peças tamanho P, quatro M, quatro G e duas GG. Um pack para os estados do Sul provavelmente teria maior quantidade de peças G e GG, em detrimento de P e M.
A ordem de compra dos produtos encaminhada aos fornecedores tomava por base justamente os packs adequados às características mencionadas. Quando chegavam ao nosso centro de distribuição, eram encaminhados diretamente às lojas. Nesse sistema, denominado cross docking, 100% dos produtos são encaminhados para os pontos de venda: do centro de distribuição, vão direto para as lojas.
O conceito de push-pull é mais eficiente, pois em torno de 60% dos produtos são encaminhados em packs para as lojas. Os 40% restantes ficam no centro de distribuição e são remetidos à medida que ocorrem as vendas dos outros 60% já enviados aos pontos de venda. Dito de outra forma: com o push-pull, as margens de acerto entre o que é exposto e o que é comercializado crescem muito, e, com isso, reduzem-se não apenas as remarcações (no caso, de produtos em dissonância com o preferido pelas clientes de determinada loja), como também são menores as perdas de vendas por falta de produtos desejados em outra unidade.
Um exemplo simples, que torna mais fácil o entendimento do processo, é o de um vestido na cor branca, tamanho GG, que porventura seja enviado para uma loja em Manaus, no Norte do País, ao preço de R$ 100,00. Essa peça provavelmente não será vendida, em razão da cor e do tamanho (incompatíveis com o gosto e as medidas médias da mulher daquela região), a menos que tenha seu preço remarcado, o que significaria reduzir nossa margem.
Mais que isso: com o produto colocado na loja “errada”, estaríamos perdendo a chance de efetuar uma venda em Porto Alegre, no Sul, onde provavelmente, por suas características de cor e tamanho, o vestido seria vendido pelo preço cheio (R$ 100,00), pois estaria mais próximo do que a consumidora gaúcha espera encontrar. Conclusão: produto certo no local certo significa mais vendas e com margem maior.
Depois de dedicar algum tempo à análise do caminho que deveríamos tomar, decidi seguir à risca minha prática na Lojas Renner: dediquei-me a “vender” a ideia internamente, em lugar de simplesmente impô-la no estilo top-down autocrático, pelo qual não nutro a menor simpatia.
Estimulei nossos líderes a se interessar pelo assunto, inclusive sugerindo que viajassem, procurando conhecer melhor as experiências das empresas que se enquadram no conceito de novo varejo que citei antes. Aos poucos, adesões espontâneas foram acontecendo. Um pouco mais tarde, formamos um grupo que começou a trabalhar no assunto de maneira mais intensa. Trouxemos pessoas para falar sobre o tema na empresa. E, assim, construímos o consenso sobre a necessidade de implantarmos o fast retail na Lojas Renner.
Mas nós não paramos por aí. Simultaneamente, percebemos que poderíamos também reduzir as despesas operacionais se mudássemos a forma de operar das atividades de retaguarda das lojas. Passamos a nos perguntar: por que não centralizar, em uma mesma área, atividades semelhantes que até então eram desenvolvidas por pessoas ou equipes espalhadas em diferentes locais? Foi assim que nasceu o centro de serviços compartilhados (CSC), por meio do qual uma equipe de pessoas realiza atividades comuns a muitas lojas. É como se fosse uma linha de produção.
Por que ter uma pessoa (ou equipe) para fazer o lançamento de notas fiscais em cada loja se poderíamos centralizar essa operação em Porto Alegre? Assim, oferecemos ao pessoal da linha de frente a possibilidade de, reduzindo o tempo das atividades administrativas, estar mais focado no atendimento ao cliente, detectando com mais precisão o que está vendendo e, principalmente, o que não está vendendo. Em síntese, com o CSC, simultaneamente aumentamos a produtividade e reduzimos custos.
A DIGITALIZAÇÃO
A combinação dos resultados do CSC com a maior eficiência nas vendas proporcionada pelo push-pull e a adoção do modelo de fashion retailer colocou-nos em um novo patamar de excelência e de resultados. O e-commerce e a digitalização dos negócios fizeram parte desse movimento de atualização da Lojas Renner em relação aos novos tempos.
O e-commerce está inserido no contexto da digitalização dos negócios, que na verdade diz respeito a um movimento bem mais amplo do que simplesmente criar um site e efetuar vendas pela internet. Disponibilizar compras por multicanais (lojas físicas, desktop, rede social, mobile etc.) é inevitável para quem busca manter ou conquistar posição de preferência do consumidor, que cada vez mais procura por experiências em todas essas alternativas.
Para a Lojas Renner, que deu seus primeiros passos no e-commerce em 2013, dispor da conveniência de lojas físicas em todas as regiões do Brasil é um diferencial competitivo importante. Assim nossas clientes têm a possibilidade de efetuar trocas de mercadorias compradas pela web dirigindo-se a uma das lojas de shoppings. Além disso, cada vez mais o consumidor quer ter várias alternativas, como comprar pela web e retirar na loja ou comprar na loja e receber o produto em casa.
A loja física é uma alternativa a mais e muito significativa na comparação com os negócios exclusivamente virtuais, que, no caso da necessidade de alguma troca, dependem 100% da logística reversa, em que o produto a ser trocado é buscado no endereço do comprador e depois enviado novamente, processo em geral demorado. E nunca é demais acrescentar que vários negócios que iniciaram só em web estão, gradualmente, apostando em pontos físicos, como apoio na comercialização e no relacionamento, buscando maior satisfação do consumidor, como Amazon e Alibaba.
Esse novo formato de operação demanda cuidados ainda maiores com os estoques, para evitarem-se experiências frustrantes (erro de numeração, por exemplo, ou demora na entrega dos produtos). A verdade é que o universo digital e o mundo físico vão conviver durante muito tempo, e o desafio de empresas como a Lojas Renner é assegurar, nas compras virtuais, a mesma experiência encantadora das compras feitas pessoalmente. Outro desafio é manter no mundo digital a mesma linha de comunicação e identidade, preservando e, se possível, reforçando os atributos da marca.
Digitalização é um conceito que vai muito além do e-commerce. Trata-se, na verdade, de um novo modelo de negócio que contempla áreas como big data (inteligência no uso de dados), armazenamento na nuvem, algoritmos, inteligência artificial, robôs, beacons, internet, realidade virtual etc. O que estamos vivenciando é uma enorme disrupção em relação aos modelos até então vigentes, não só no varejo, como nas relações entre as pessoas.
O FUTURO
Por volta de 2010, antes de se iniciar a preparação do novo ciclo do fast retail, onde simplicidade seria fundamental, senti a necessidade pessoal de tornar meu dia a dia menos atribulado. Eu me via como uma pessoa com uma rotina mais complexa do que simples, e entendi que seria incoerência propor mais simplicidade nos processos da empresa sem que isso começasse por mim.
De início, pedi a Eva, minha secretária de muitos anos, que repassasse a outros executivos questões específicas de suas áreas e deixasse os assuntos mais importantes para eu seguir tratando. Ao mesmo tempo, informei a ela que reduziria minha participação em eventos sem relevância para o negócio e listei uma série de tarefas que sairiam da minha agenda diária.
Aos poucos, percebi que havia por trás daquilo o conceito da simplicidade, que deveria ser compartilhado com toda a empresa, para que nossas pretensões de nos tornarmos fast fossem implementadas e irreversíveis. Com ele, passei a adotar duas máximas que comandam minha vida. A primeira: “É muito mais difícil ser simples do que ser complexo”. A segunda: “Foco não é o que você tem de fazer; é o que tem de deixar de fazer”.
A simplicidade é buscada em nossa empresa dia após dia. Desde que se transformou em uma corporação e entrou para o time das protagonistas do fashion retailer, a Lojas Renner iniciou a fase de maior êxito ao longo de sua trajetória de crescimento, bem definida em maio de 2014, quando um relatório do Banco BTG Pactual a apontou como a nova líder do varejo de moda no Brasil. O que poderia ter sido um belo epílogo para uma história de encantamento foi o prólogo da uma reinvenção.
Exatos dois anos depois, em maio de 2016, decidimos anunciar que era chegada a hora de cruzar fronteiras e comunicamos o início de nossas operações internacionais, no Uruguai, em 2017, com a abertura de três lojas em Montevidéu.
OS RESULTADOS DO ENCANTAMENTO
Em maio de 2017, a Renner teve seu valor de mercado estimado em US$ 6 bilhões. Isso significa que uma pessoa que em 1991 tivesse investido US$ 1 mil em ações da empresa teria, então, um patrimônio de US$ 6 milhões. Hoje, o grupo emprega mais de 19 mil colaboradores. Recentemente, a Renner foi eleita pela consultoria Interbrand a 13ª marca mais valiosa do Brasil, em todos os segmentos econômicos, independentemente do setor. Não por acaso, é a líder em faturamento no segmento do varejo de moda no Brasil.
Se tivesse de pinçar apenas uma entre tantas vivências no varejo, qual José Galló destacaria? Ele ressalta a crença no encantamento do cliente como a mais importante contribuição de sua carreira, ou seja, a conquista da adesão de uma legião de praticantes, dentro e fora da Lojas Renner. Qual a definição de encantar? Trata-se de superar as expectativas, indo um passo adiante da satisfação, ao entregar algo mais do que aquilo que já se espera da empresa, um valor que pode ser praticado por qualquer pessoa, em qualquer esfera de sua vida, seja pessoal ou profissional.
É a versão mais próxima, no Brasil, do foco no cliente que empresas como a Amazon pregam e requer a autonomia dos funcionários da linha de frente para que seja possível. Galló consegue fazer isso ao conciliar o inconciliável: desafiando uma estrutura naturalmente burocrática, dá autonomia aos funcionários da linha de frente, mas mantém um nível de centralização que lhe garante a tomada rápida de decisões.
Fonte: HSM Management, por José Galló