Kathleen McLaughlin, executiva-chefe de sustentabilidade da gigante supermercadista, acredita que sua empresa está cumprindo esse papel e descreve, nesta entrevista, as iniciativas que comprovam a tese. As empresas existem para servir a sociedade. A questão é: Como elas interpretam isso e o que fazem?
Hoje o Walmart é o maior distribuidor de produtos orgânicos da América do Norte, superando até a Whole Foods Market, rede de supermercados especializada em orgânicos e alimentação saudável. A jornada sustentável da empresa fundada por Sam Walton começou em 2005, com o então CEO Lee Scott, e só vem ficando mais abrangente e profunda, disseminando-se entre os 28 países em que atua, incluindo o Brasil. A companhia crê atuar como uma verdadeira agente de mudança do varejo supermercadista e influenciar positivamente as corporações mundiais.
No entanto, o mesmo Lee Scott, já fora do Walmart, publicamente lançou dúvidas sobre as boas intenções da empresa. Em um evento nos Estados Unidos em 2008, ele fez duas afirmações polêmicas: “Não somos verdes” e “A saga do Walmart rumo à sustentabilidade ambiental e social é motivada mais pela ânsia de economizar dinheiro”. Isso levou organizações ambientalistas diversas a acusar o Walmart de “greenwashing”, a tão recriminada maquiagem verde, puramente marqueteira. Segundo algumas ONGs, a rede tomaria suas decisões movida sobretudo pelo desejo de reduzir custos e, sob esse norteador, estaria precarizando as condições dos trabalhadores, próprios e de sua cadeia de fornecimento, indo contra o fundamento da sustentabilidade.
A seguir, a professora Sarah Kaplan, da Rotman School of Management, do Canadá, entrevista a poderosa executiva sênior de sustentabilidade do Walmart, Kathleen McLaughlin, sobre os pilares dos programas de sustentabilidade da empresa. Especialista em questões de gênero, Kaplan questionou-a até sobre a discriminação às mulheres pela qual a companhia foi criticada por muito tempo.
- Quando você passou a enxergar o Walmart como um possível agente de mudança no mundo?
Deixe-me começar com uma ideia muito simples, embora meio polêmica: as empresas existem para servir a sociedade. A questão é como elas interpretam isso e o que fazem para materializá-lo. O modo mais óbvio é ver o que a companhia faz no dia a dia para servir os clientes. Em 2013, assim que cheguei ao Walmart, fui a Soweto, na África do Sul, onde temos lojas com a bandeira Cambridge. Estava com nossa equipe de gestores quando orientavam os funcionários sobre segurança alimentar, para garantir que a carne crua não encostasse nos legumes, e sobre outros procedimentos.
Observei por alguns minutos o movimento: famílias inteiras entravam para fazer compras; mães com bebês nas costas colocavam alimentos em seus carrinhos. Eu já tinha ido àquela parte da África muitas vezes, trabalhando com questões ligadas à aids e a cuidados maternos, mas, de repente, me pareceu que aquela loja estava viabilizando um tipo totalmente diferente de desenvolvimento.
A abordagem varia um pouco em cada um dos 28 países em que o Walmart atua, mas, essencialmente, tem a ver com oferecer alimento, roupas e mercadorias em geral a preços acessíveis para tornar a vida das pessoas melhor. O valor desse propósito ficou evidente para mim naquele dia.
- Então, o Walmart realmente se imbuiu da ideia de que “as empresas existem para servir a sociedade”, em vez de “servir os acionistas”? Como?
Tudo começou em 2005, com o furacão Katrina, que afetou diretamente muitos de nossos colaboradores e clientes. A equipe do Walmart passou a ajudar e ouviu algumas histórias impressionantes de heroísmo. O CEO à época, Lee Scott, liberou o pessoal para agir e gastar sem pedir autorização: “Vão em frente e façam o que precisa ser feito. Depois vemos quanto custará”. O evento foi tão cataclísmico que mudou o modo como a liderança da empresa pensava. O Walmart se perguntou: “E se pudéssemos ser essa empresa todos os dias, não só agora?”. Passado algum tempo, Scott fez um discurso, ao qual deu o nome de “Liderança do século 21”, definindo três objetivos amplos para o Walmart: ser suprido com energia 100% renovável, não gerar lixo e vender produtos sustentáveis.
Na época, de fora da empresa, eu me perguntava: “Como assim? O Walmart?”. Ao entrar aqui, no entanto, aprendi que, quando a empresa diz que vai fazer algo, realmente faz. Foi uma surpresa. O Walmart é muito orientado à execução. Todo o sistema mudou nesses mais de dez anos, conforme desenvolvemos programas em torno desses três objetivos e trabalhamos de perto com centenas de fornecedores, outros varejistas, órgãos do governo e organizações não governamentais.
- Vocês têm três pilares na abordagem de servir a sociedade. Por favor, nos explique um pouco…
Nosso princípio-chave é criar valor compartilhado – conceito de Michael Porter e Mark Kramer que reconhece que o impacto social e o dos negócios se sobrepõem. Então, primeiro, obtemos dos stakeholders informações sobre que problemas sociais os afetam com mais intensidade e, depois, nos perguntamos o que podemos fazer a respeito deles casando-os com os negócios. Com base nisso, criamos um programa em torno dos três pilares: oportunidade econômica, sustentabilidade e desenvolvimento comunitário. Eles não mudam de um ano para outro, mas o que fazemos em cada um pode mudar.
A oportunidade econômica é um foco natural para nós, já que geramos empregos e compramos em todo o mundo. Podemos desempenhar papel significativo na possibilidade de ascensão social dos colaboradores e dos que fazem parte da cadeia de valor da empresa.
Em relação à sustentabilidade, falamos agora em “custo verdadeiro”, das perspectivas social e ambiental, e não apenas em preço baixo. Por meio desse pilar, desejamos criar mais economia circular, com abordagem restauradora para o desenvolvimento e a entrega de produtos e para o que acontece após o consumo. Isso envolve clima, lixo, segurança alimentar, capital natural etc. Já o terceiro pilar diz respeito a nosso papel em milhares de comunidades: o que fazemos no dia a dia ou em épocas de crise, como a do furacão Katrina.
- O mais recente relatório de responsabilidade social de vocês enfatiza a ideia de que tudo são sistemas. Por que isso é importante e o que os levou a essa direção?
Não pensamos em responsabilidade social como algo à parte do negócio principal da empresa; queremos é tentar mudar os sistemas como um todo. Por exemplo, o Walmart gasta bilhões por ano em compras. Uma encomenda de longo prazo nossa oferece a segurança para outras organizações investirem em infraestrutura de processamento. Também dá a base para que órgãos como o Usaid [Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional] ofereçam assistência técnica em práticas agrícolas. E por aí vai. Isso é um sistema; se as partes funcionarem bem juntas, o sistema sai fortalecido.
Para tomarmos uma iniciativa com essa visão sistêmica, temos de acreditar que contamos com ativos valiosos para a situação. Pense na fome, por exemplo, e considere que alimentos estão entre nossos principais ativos. Depois de vender alimentos a preços acessíveis como sempre fazemos, haverá uma sobra não comercializável, própria desse varejo; então, nós a doamos – e dá cerca de US$ 1 bilhão em alimentos todo ano. É bom para a empresa, porque reduz o volume de material para o aterro sanitário, o que é custo para nós, e é bom para reduzir a fome.
- O que o Walmart faz pelas mulheres?
No Canadá, aumentamos o número de mulheres gerentes de loja em mais de 50% nos últimos anos e, globalmente, 31% de nosso pessoal corporativo é composto de mulheres – compare esse índice com os 15% em média do ranking Fortune 500 ou os 18% do varejo. Além disso, já nos comprometemos a adquirir US$ 20 bilhões em produtos de empresas de propriedade de mulheres em nossa operação nos Estados Unidos.
- Por que vocês enfatizam tanto a colaboração nesse agenciamento de mudança?
Muitas coisas precisam acontecer para que as mudanças sociais ocorram. Trabalhamos com líderes de muitos sistemas para estabelecer uma visão compartilhada de melhorias e então alcançá-las.
Por exemplo, não conseguiríamos ter apoiado o treinamento de cerca de 1 milhão de mulheres sem o trabalho da Care, da World Vision, da Swasti, do Usaid e da Bill & Melinda Gates Foundation. Além de treinar as mulheres, agora temos um modelo para isso que qualquer um pode usar – e queremos compartilhá-lo; isso é parte de nossa teoria da mudança.
- Quando um objetivo social não tem uma justificativa nos negócios, como vocês lidam com isso?
Pense em um diagrama de Venn para “valor para a empresa” e “valor para a sociedade”; como a intersecção entre os conjuntos é bem grande, há muito espaço para fazer diferença.
Quando não é esse o caso, temos a Walmart Foundation, com seu programa filantrópico. Por exemplo, nosso compromisso em treinar por volta de 1 milhão de mulheres em nossa cadeia de valor não fazia sentido para a empresa; então, a fundação apoiou o treinamento de cerca de 760 mil mulheres em fazendas e fábricas.
- Muitas práticas de negócios podem criar valor social, mas não imediatamente, não é verdade?
Sim, um bom exemplo é o bem-estar animal. Muitas pessoas não estão satisfeitas com a maneira como se criam porcos ou se obtêm ovos, mas mudar esses sistemas demora, porque exige criar sistemas melhores, o que, por sua vez, exige capital. Como isso evoluirá sem aumentar o preço do produto final eu não sei; é um desafio real, que temos de enfrentar com a colaboração com quem produz.
- Você é presidente da fundação e CSO do Walmart. Por que ter a mesma pessoa nos dois cargos?
Acho importante integrar os esforços filantrópicos com o que a companhia está fazendo de responsabilidade social, porque, como dissemos, a empresa só consegue ir até certo ponto. A fundação Walmart tem isenção de impostos e, assim, seguimos regras rígidas em termos da natureza do que fazemos em prol de melhorias sociais. Essas melhorias não estão diretamente ligadas ao Walmart, mas visam aperfeiçoar os sistemas com os quais trabalhamos como um todo.
- Você diria que, às vezes, os objetivos sociais perseguidos entram em conflito?
Vou responder com o exemplo do desmatamento no Brasil. Temos feito muito em relação a evitar o desmatamento na produção do óleo de palmeira, da soja e da carne e nos sentimos bem com isso. No entanto, não temos o mesmo desempenho com a produção de papel, por falta de capacidade. Tínhamos de começar por algum lugar, e foi com o óleo, a carne e a soja que começamos. Também achamos que seria mais fácil obter resultados nessas três frentes, dados os atores envolvidos. Certas coisas levam mais tempo.
Vinte anos atrás, o Walmart nunca publicaria um relatório de responsabilidade social… Como vocês chegaram até aqui?
Todos podemos sentir os efeitos da mudança climática ou da crescente desigualdade em torno de nós. Com o tempo, passamos a sentir pressão real em relação a problemas como esses, para os quais a busca de soluções deixou de ser coisa de malucos.
O outro lado
O documento Top ten ways Walmart fails on sustainability, elaborado pelas organizações ambientalistas Food & Water Watch e Institute for Local Self-Reliance em 2012, sintetiza as principais críticas das ONGs à rede supermercadista fundada por Sam Walton:
• O Walmart não prezaria pela qualidade e durabilidade dos bens de consumo que vende, especialmente os frescos, como saladas e frutas, gerando desperdício. A razão disso seria a ausência de funcionários qualificados para lidar com esses produtos, porque a companhia os remunera mal. Os baixos salários dos colaboradores são apontados pelos ambientalistas como prova cabal de que a sustentabilidade não é levada a sério pela empresa. Os ganhos obtidos pelo programa de redução de resíduos do Walmart seriam quase irrelevantes em comparação com o volume de poluição e lixo resultante do consumo dos outros bens que a rede vende. (Na época, a empresa reagiu à crítica afirmando que manteve 80,9% dos resíduos dos Estados Unidos fora de aterros, enquanto na China e no Brasil o índice médio foi de 52%.)
• O objetivo de funcionar com energia 100% renovável seria atingido muito lentamente, ao que o Walmart respondeu que as tecnologias são caras. Mesmo assim, o programa Green Power Partnership o ranqueou como a segunda empresa que mais gera energia verde nos Estados Unidos. Embora afirme apoiar a agricultura sustentável, o Walmart estaria usando seu poder de mercado para incentivar a industrialização e a concentração do sistema de alimentação, uma vez que suas práticas empresariais de forçar a redução de preços e alargar os prazos de pagamento teriam provocado fusões e aquisições de frigoríficos, laticínios e variados processadores de alimentos. (Uma corrente de acadêmicos acredita que o Walmart consegue de fato pressionar os pequenos e médios produtores e as companhias processadoras a ter políticas verdes.)
• O fato de o Walmart reduzir o preço dos orgânicos, contrapondo-se aos preços elevados das feiras de produtores, justificaria aumentar o preço dos demais produtos, e essa seria sua real intenção, na visão das ONGs. O tradeoff não valeria a pena para os consumidores, porque, segundo nutricionistas, os benefícios dos orgânicos para a saúde são desprezíveis.
• O Walmart privilegiaria os produtores locais apenas para reduzir os custos de transporte, e não por uma intenção sustentável. As ONGs ainda criticam o conceito de produção local da empresa (aquela oriunda do mesmo estado em que o supermercado está instalado), porque o conceito não se esgota na dimensão geográfica, englobando aspectos de escala (baixa escala), formas de propriedade (pequenos produtores familiares) e condições de trabalho (oportunidades para a comunidade).
• Os ambientalistas alegam que o Walmart seria um consumidor voraz de terras, pelas lojas que abre continuamente, o que não é sustentável.
• De 2005 a 2012, o Walmart teria feito quase 60% de suas doações a campanhas de parlamentares dos EUA que votaram contra o meio ambiente.
Os principais programas no Brasil
O Walmart Brasil é bastante ativo na área de sustentabilidade, e três iniciativas se destacam: o Clube dos Produtores, o programa Sustentabilidade de Ponta a Ponta e o importante Sistema de Monitoramento de Gestão de Riscos Sociais e Ambientais do Bioma Amazônia.
• Lançado em 2002 com 14 famílias no Rio Grande do Sul, o Clube dos Produtores proporciona a pequenos e médios agricultores o acesso ao grande varejo, sem a interferência de intermediários. Além de favorecer os integrantes do clube em suas compras – dando-lhes melhores prazos de pagamento e garantindo maior visibilidade para seus produtos nas lojas –, o Walmart lhes oferece apoio técnico e segue uma política de pagar preços justos, com o objetivo de estimular as economias locais. Mais de 9 mil famílias já participam do clube em 19 unidades da federação e mais de 900 itens das lojas vêm desse programa – como o caju e a castanha de caju da Copaju, cooperativa de 800 famílias do Ceará, e o mel da Apimel, do sertão do Piauí.
• O programa Sustentabilidade de Ponta a Ponta, idealizado pelo Walmart Brasil em 2009, estimulou fornecedores a reavaliar seus processos para reduzir o impacto negativo – social e ambiental – do ciclo de vida de seus produtos e embalagens. Cerca de 30 fornecedores aderiram ao programa e desenvolveram ou adaptaram mais de 40 produtos à venda na rede em uma versão mais amigável ao meio ambiente, como o Toddy (orgânico), o xampu Johnson’s, a maionese Hellmann’s e o leite condensado Itambé. O programa foi adotado por outras unidades do grupo no mundo.
• Para monitorar e gerenciar riscos associados à carne bovina, o Walmart passou a avaliar, em 2009, as fazendas de gado da Amazônia que fornecem carne para os frigoríficos com que mantém relacionamento comercial. O Sistema de Monitoramento de Gestão de Riscos Sociais e Ambientais do Bioma Amazônia cruza informações sobre a localização dessas fazendas com dados de desmatamento, desrespeito a terras indígenas e a unidades de conservação e uso de trabalho análogo ao escravo. Os dados são oficiais, coletados de diferentes órgãos do governo, como a Fundação Nacional do Índio (Funai), os ministérios do Meio Ambiente e do Trabalho e Emprego, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama), o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) e o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Além disso, em 2013, o Walmart incorporou o conceito de desmatamento zero como critério de análise do sistema de monitoramento e, em 2015, suas lojas e centros de distribuição passaram a recusar todas as mercadorias com alguma irregularidade denunciada pelo sistema. O plano é expandir o uso dele para outros biomas.
As 20 empresas que mais mudam o mundo segundo a revista Fortune (listagem de 2017)
- GlaxoSmithKline (farmacêutica)
- IDE Technologies (bens de capital)
- General Electric (bens de capital)
- Gilead Sciences (farmacêutica)
- Nestlé (alimentos)
- Nike (vestuário)
- MasterCard (serviços financeiros)
- United Technologies (tecnologia aeroespacial e de defesa)
- Novozymes (químicos especializados)
- First Solar (energia)
- Coca-Cola (bebidas)
- Intel (semicondutores)
- Munich RE (seguros)
- Fibria Celulose (papéis e produtos florestais)
- Walmart (varejo)
- Bank of America (serviços financeiros)
- Crystal Group (vestuário)
- Ito En (bebidas)
- PayPal (serviços financeiros)
- Skandia (seguros)
Fonte: Revista HSM Management, com entrevista realizada por Sarah Kaplan à entrevistada Kathleen McLaughlin